Os 11 milhões de euros que, em tempos de fome, voaram para uma Web Summit totalmente virtual

Aos responsáveis políticos, fica a lição de que não devem emprestar chaves de honra da cidade a quem não as merece e ainda que a política estratégica em que continuam a insistir, a de uma cidade entendida exclusivamente como um produto exportável, lesa o interesse público.

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Reuters/PEDRO NUNES

Na primeira edição da Web Summit em Lisboa, em 2016, Fernando Medina emprestou as chaves de honra da cidade a Paddy Cosgrove – CEO do evento. As chaves da cidade são “um galardão destinado a distinguir personalidades, instituições ou organizações nacionais ou estrangeiras que, pelo seu prestígio, cargo, acção ou relacionamento com Lisboa, sejam considerados dignos dessa distinção”.

Em 2018, este namoro consolidava-se através de um contrato assinado entre a Web Summit e a Câmara Municipal de Lisboa para vincular a cimeira por mais dez anos à capital. Em contrapartida, 11 milhões de euros de dinheiros públicos por ano seriam entregues à organização (110 milhões no total) e os pavilhões da FIL seriam expandidos de forma a aumentar o número de participantes. Outros compromissos implicavam: “assegurar a participação do primeiro-ministro de Portugal e de outras figuras públicas relevantes na Web Summit” ou ainda garantir “descontos nos meios de transporte da cidade durante todos os dias do evento para todos os participantes.

Paddy Cosgrove elogiava o contrato e considerava a sua decisão como a “mais doida da sua vida”; isto porque outras cidades que se candidataram tinham proposto valores superiores e espaços mais amplos. É o exemplo de Londres, Berlim ou Valencia. Este modelo em que o dinheiro dos contribuintes é canalizado para cobrir os custos de uma empresa privada cujos retornos serão elevados a avaliar pela inacessibilidade dos preços dos bilhetes já é de si criticável. Contudo, do seu lado, Paddy Cosgrove tinha dados capazes de defender uma posição: um retorno de 300 milhões de euros por ano para a cidade e a passagem de investidores cujo volume de negócios valeria o triplo do PIB português.

Com a pandemia de covid-19, este argumento desvaneceu-se. Em 2020, a Web Summit será totalmente virtual e, portanto, os 300 milhões de euros de retorno a que a cidade teria direito simplesmente desapareceram. Isso não impediu Paddy Cosgrove de exigir à mesma os 11 milhões de euros que lhe eram devidos à Câmara Municipal de Lisboa, afirmando: “Poderíamos ter recebido 25 milhões de euros e ir embora” ou “Devíamos, talvez, ter feito o mesmo que o World Mobile Congress de Barcelona ou o South by Southwest em Austin [eventos cancelados], tínhamos direito [a cancelar]”.

Num momento em que inúmeras pessoas no sector da cultura e da restauração (entre outros) passam por enormes dificuldades (falamos de fome), tudo isto me parece obsceno. Pergunto-me a importância que esta verba teria no apoio a situações de urgência social. Paddy Cosgrove, pelo contrário, acha que está no seu direito (e está, contratualmente). O suposto líder inspirador da tecnologia, inovação e empreendedorismo é, afinal, um mero empresário burocrata. A falta de ética e de dignidade que demonstra tem pelo menos o benefício de desconstruir a plasticidade destas figuras globais e de nos alertar para os “amanhãs digitais e radiosos" que nos querem vender.

Aos responsáveis políticos, fica a lição de que não devem emprestar chaves de honra da cidade a quem não as merece e ainda que a política estratégica em que continuam a insistir, a de uma cidade entendida exclusivamente como um produto exportável, lesa o interesse público.

Para finalizar, uma pergunta no valor de 340 milhões de euros: no contrato de 2018 não ficou estabelecido que caso a Web Summit decidisse abandonar Lisboa antes do fim do contrato este era este o valor pelo qual o município deveria ser recompensado anualmente? Que pena não desistirem.

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