O Estado de direito por um punhado de euros

Temos assistido ao longo destes últimos anos a um torcer dos valores democráticos no espaço europeu. De uma forma muito visível, Hungria e Polónia têm desmembrado os contrapoderes, imprensa, justiça, organizações não governamentais, o mundo académico e, é claro, a oposição política, procurando impedi-la de aceder ao espaço público.  

A complacência com esta deriva democrática deveu-se a aritméticas que se fundaram mais nos interesses do que nos valores, a começar no PPE, para quem os deputados húngaros vindos do partido de Orbán foram e são ainda essenciais para manter o centro direita maioritário no Parlamento Europeu. No entanto, bastava ler o artigo 2.º do tratado da União, “fundada” sobre “os valores do Estado de direito”, para se perceber que esse era caminho errado.  

E se o era ontem, hoje ainda o é mais, porque o mundo está em recomposição acelerada na sequência do impacto do coronavírus em todas as sociedades, sejam democracias, autocracias ou ditaduras. À crise sanitária soma-se já uma crise económica (com riscos de vir a tornar-se num campo em ruínas – e se não o é já nalguns setores está a aproximar-se inexoravelmente), a somar-se ainda uma eventual crise política motivada por descontentamentos em cascata. A definição do espaço onde queremos viver torna-se, por isso, numa exigência maior.

É certo que a urgência nos fundos de recuperação é crucial para evitar maiores sobressaltos sociais e políticos decorrentes do marasmo económico, campo sempre fértil ao discurso populista e demagógico. Mas tergiversar nos fundamentos e nos valores em nome da urgência económica é um risco muito grande, porque este é um daqueles momentos onde se constroem os alicerces sobre o que seremos amanhã enquanto espaço de liberdade e democracia.

Os argumentos para edulcorar as posições húngaras e polacas e fazê-los votar as verbas necessárias, seja o orçamento seja o plano de recuperação, agora que se encerraram numa espécie de barricada, não deixa soluções fáceis à vista, e o passado, ao contrário do que alguns defendem, não traz nenhum recurso aceitável a estas situações.

O artigo 7.º do tratado da União já permitiu abrir procedimentos de sanções a Varsóvia e Budapeste, mas sem conseguir chegar a lado algum, e está mesmo destinado a ser um fracasso porque a imposição de sanções necessita da unanimidade de todos os países menos do visado, e Hungria e Polónia exercem vetos cruzados para se protegerem um e outro. 

A solução de recorrer ao Tribunal de Justiça da União, como alguns defendem, arrisca-se a esbarrar na decisão do tribunal Constitucional alemão de maio deste ano, quando admitiu que o Tribunal de Justiça da União Europeia tinha extravasado poderes ao validar decisões do BCE em 2012 para compra de ativos, medida que permitiu, por exemplo, a Portugal e a Espanha conseguirem taxas mais brandas nos mercados financeiros.

Com este exemplo, outros tribunais nacionais podem agora ignorar as diretivas jurídicas europeias, como é o caso da Hungria e Polónia. Na altura, um responsável governamental polaco chegou mesmo a dizer que “os Estados membros voltaram a ser os senhores dos tratados europeus.” 

Hungria e Polónia não querem que a União escrutine as suas práticas não democráticas, mesmo que para isso estejam dispostos a levar até ao fim o bloqueio dos fundos de recuperação. E mesmo que haja vontade de alguns países em adocicar os termos do que foi acordado em junho deste ano e negociado mais tarde entre a Comissão e o Parlamento Europeu, será quase impossível que tal possa vir a ser aprovado pelos eurodeputados: os grupos mais importantes já avisaram que não estão dispostos a mexidas nos termos acordados, o tal condicionalismo entre os fundos e o respeito pelas regras do Estado de direito.  

Há ainda a hipótese de contornar os dois países recalcitrantes e deixá-los de fora, compondo um grupo com os restantes 25 membros, uma espécie de coligação “de boa vontade” que permita ultrapassar o impasse e garantir as verbas do fundo de recuperação. Mas isso seria tecnicamente complexo e um péssimo sinal para a democracia europeia, até por não haver mecanismos de exclusão nos tratados europeus. E modificá-los nesta altura de urgência é uma impossibilidade.

A atual presidência da União Europeia pertence à Alemanha, e se com todo o seu peso político e económico ela não conseguir solucionar o assunto até ao final de dezembro, o assunto passa para a presidência portuguesa.

Se a democracia europeia não pode ficar refém daqueles que a recusam, também será dificilmente entendível que possa renunciar a valores em nome do dinheiro, se bem que urgente para estimular a economia e o crescimento nesta Europa a viver a sua pior recessão desde a Segunda Guerra Mundial. 

Porque a verdade é que o primado da lei, como referiu a comissária Vera Jourova, “é o que permite aos cidadãos ficaram a salvo das tentações dos governos que confundem a sua vitória eleitoral com a essência da democracia.” O caminho é muito estreito e vale certamente mais do que um punhado de euros.  

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