Já se compraram tantas doses de vacinas para a covid-19 quantos os habitantes há na Terra
O problema é a distribuição: houve um açambarcamento esmagador dos países ricos, como os EUA e a UE. África procura soluções, e há um desafio na Organização Mundial do Comércio à lei da propriedade intelectual.
Já foram compradas ou encomendadas sete mil milhões de doses de vacinas contra o novo coronavírus, diz Krishna Udayakumar, director adjunto do Centro de Inovação para a Saúde Global da Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA). Podia haver uma para cada habitante do planeta. Mas a distribuição parecer-se-á mais com a velha anedota estatística da divisão dos frangos: se eu comer dois e tu não comeres nenhum, entre nós ambos comemos um frango.
“É um objectivo e uma aspiração conseguir vacinar 60% do continente africano”, afirmou John Nkengasong, o virologista camaronês que dirige o Centro de Controlo e Prevenção das Doenças – África, uma entidade da União Africana constituída à semelhança do CDC norte-americano. Nkengasong reconheceu que é impossível que a vacinação contra o novo coronavírus comece no continente africano antes de meados de 2021, na melhor das hipóteses. E estimou que seriam necessárias 1500 milhões de doses de vacinas – pouco mais do que as doses que a União Europeia já adquiriu para a sua população.
Só que a UE tem 741,4 milhões de habitantes, e o continente africano, segundo estimativas da ONU, tem 1353 milhões de habitantes – quase o dobro.
É este o retrato do que se passa pelo mundo fora: os países mais ricos, normalmente acima da linha do equador, apressaram-se a fazer acordos com as farmacêuticas para financiar o desenvolvimento rápido de vacinas para a covid-19, comprando antecipadamente milhões de doses para a sua população. “Já foram adquiridas 3700 milhões de doses por países de altos rendimentos, através de acordos bilaterais, 1700 milhões de doses por países de baixos-médios rendimentos e ainda 700 milhões por países de rendimento alto-médio”, enumera Udayakumar, cuja equipa recolheu dados públicas para construir uma base de dados.
“É bastante claro que os países mais ricos escolheram pensar em si próprios e lançaram-se numa corrida para comprar por antecipação tantas doses de diferentes vacinas quantas seja possível. Isto quer dizer que terão a vacina antes de quaisquer outros”, disse ao PÚBLICO Els Torreele, do Institute for Innovation and Public Purpose do University College de Londres, formada em bioengenharia e biomedicina mas que faz investigação sobre direitos humanos, inovação e acesso aos medicamentos. No início de Novembro, publicou uma análise na revista Development sobre como a “corrida” às vacinas está a expor as deficiências do sistema de inovação em medicina.
Em vez de aumentar a inteligência colectiva, defende, este sistema de business as usual assenta na competição entre vacinas protegidas por patentes permite que seja baixado o nível de exigência na segurança e eficácia dos produtos, o que põe em causa a saúde das pessoas e reduz a confiança.
Apesar das belas palavras, dos alertas contra o “nacionalismo das vacinas”, foi esse o caminho seguido – com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a desbravar caminho, quando decidiu até sair da Organização Mundial de Saúde e desligar-se de tudo e todos.
“Claro que os países ricos se querem proteger, mas estão a subverter a solidariedade global”, afirmou ao PÚBLICO Hu Yuan Qiong, conselheira legal dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) nos temas de acesso aos medicamentos e propriedade intelectual. “Foi investido muito dinheiro para acelerar a investigação em vacinas, mas houve muitas contribuições públicas, até de pacientes, que não estão a ser contabilizadas”, declarou.
“As vacinas assentam numa plataforma tecnológica que não existiria sem que tivesse sido sequenciado rapidamente o genoma do novo coronavírus, por exemplo. E várias têm origem em investigação para desenvolver uma vacina contra o vírus do ébola”, exemplificou.
Suspender patentes
Os MSF são uma das muitas organizações que apoiam uma proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul na Organização Mundial do Comércio (OMC) para uma suspensão temporária de alguns direitos de propriedade intelectual, nomeadamente do acordo TRIPS, que abre portas a que os países mais pobres importem ou produzam medicamentos genéricos.
A Índia e a África do Sul têm uma indústria farmacêutica com grande capacidade de produção de vacinas ou outros medicamentos, já testada pela crise do HIV/sida. A sua proposta recebeu o apoio na OMC de Moçambique e do Paquistão. Foi discutida na OMC em Outubro e há semana meia, numa reunião informal à porta fechada – e o que se sabe é que suscitou forte oposição dos países ricos.
“Percebemos que a União Europeia, os Estados Unidos, Canadá, Japão, não concordam com este caminho. Mas estas são as nações que mais de metade das futuras vacinas para a covid19”, afirmou Hu. “Achamos estranho e uma posição bastante contestável, porque por um lado seguem uma abordagem de defesa dos seus próprios interesses. Estão a minar a solidariedade global, porque simplesmente não há doses suficientes de vacinas para toda a gente”, declarou.
“A Índia e a África do Sul, em particular, podem ser muito importantes para permitir um acesso global às vacinas. O Serum Institute, da Índia [o maior fabricante mundial de vacinas, por volume], por exemplo, tornou-se uma grande fábrica de vacinas para o mundo e já investiram de forma significativa no aumento da sua capacidade de produção para a vacina da covid-19”, comentou ao PÚBLICO Krishna Udayakumar. Na África do Sul estão a realizar-se vários ensaios clínicos de vacinas que têm como contrapartida o seu fabrico local. “Este tipo de capacidade permite que a população tenha acesso a tecnologia de produção de alta qualidade a preços acessíveis. É o que esperamos ver em todo o mundo”, concluiu Udayakumar.
Mas o desafio lançado pela Índia e pela África do Sul na OMC terá alguma hipótese de vingar? Há uma nova reunião formal do concelho TRIPS a 10 de Dezembro, e no dia 17 do conselho geral da OMC, diz Hu. Um editorial do Wall Street Journal classificava esta tentativa como “um assalto”, o que demonstra o tom da narrativa oficial. Els Torreele, que também já foi consultora dos MSF, não acredita muito que seja possível fazer dobrar as poderosas farmacêuticas, que têm os países mais ricos do seu lado Mas acha que é preciso tentar.
“É um processo político muito importante. A propriedade intelectual não devia, nem agora, nem nunca, ser uma barreira para a saúde pública”, afirmou Torreele. “Mas é realista? Provavelmente não. Porque a dinâmica de poder não está a seu favor. Mas é muito importante pressioná-los para que compreendam que não faz sentido continuar a defender posições indefensáveis: interesses privados contra a saúde pública.”