As vozes de Miranda chegaram a Lisboa e a riqueza das barragens vai deixar de escoar toda para fora da região
Região conseguiu ver aprovada, no OE 2021, norma que lhe garante uma parte maior dos impostos resultantes da actividade das barragens, reivindicação antiga reforçada, este ano, por um movimento cultural.
Como a água de um rio que corre esquecendo os locais por onde passou, dos rendimentos gerados nas últimas sete décadas pelos empreendimentos hidro-eléctricos do Douro Internacional sobraram migalhas para Miranda do Douro e Mogadouro, concelhos que iluminaram milhares de casas por esse país fora, enquanto metade da sua população apagava a luz, e rumava a destinos mais prometedores, por falta de oportunidades. Esta semana, na votação na especialidade do Orçamento, foi aprovada uma alteração que repara um pouco dessa injustiça, e que surge num ano em que um movimento cívico, cultural, engrossou a voz de uma região que há muito vinha clamando por aquilo a que sente ter direito.
O fundo que será criado a partir da proposta do PSD – aprovada com os votos a favor do CDS, PCP e BE, a abstenção da Iniciativa Liberal e do Chega, e os votos contra do PS, do PAN – não vai elevar Miranda do Douro ao estatuto de sétimo concelho com maior PIB por habitante, onde estaria se a energia entrasse no cálculo do PIB do local onde é produzida, nota o presidente de Câmara. Mas a retenção, na região, do valor de imposto de selo, 110 milhões de euros, a cobrar pelo Estado no âmbito do trespasse de seis barragens da EDP, entre elas as de Miranda, Picote (Miranda do Douro) e Bemposta (Mogadouro), no Douro Internacional, é um primeiro sinal no sentido certo da história. Assim o consideram os elementos do movimento de cidadania que este ano se formou em torno do Manifesto Cultural da Terra de Miranda e que bateram a todas as portas, incluindo a do Palácio de Belém, em busca de uma solução.
Autarca tem dúvidas
O autarca Artur Nunes considera que o “engrossar de voz” da população, muito apoiada nos movimentos culturais e na diáspora de mirandeses ajudou a dar visibilidade a um problema antigo, mas ainda tem dúvidas sobre o real impacto financeiro da proposta aprovada, que precisará de ser regulamentada, nos próximos 90 dias, e envolve os empreendimentos mais recentes, de Foz-Tua e do Baixo Sabor, que abrangem territórios em Alijó, Alfandega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Macedo de Cavaleiros, Murça, Torre de Moncorvo e Vila Flor. O que está escrito, ainda assim é que, quando a actual concessão das três barragens situadas no Douro Internacional terminar, em 2029, esse fundo autónomo terá direito a metade das receitas de uma nova concessão. E que o Estado deve alocar ali também parte do IVA e do IRC pagos pela concessionária e o valor corresponde ao IMI “que incidiria sobre os prédios que compõem as barragens e as construções anexas à sua exploração”.
“O maior proprietário de Miranda, uma empresa privada, não paga IMI. É ridículo” nota José Maria Pires, mirandês que fez carreira até ao topo na Autoridade Tributária e que, de repente, se viu a colaborar com conterrâneos de várias organizações culturais, e gente que nem conhecia, espalhada por vários pontos do país, para transformar um chão comum – o orgulho em ser de um território carregado de história e que foi capaz de preservar uma língua – num propósito concreto. E se a aprovação desta alteração vai de encontro ao que foram pedindo nas reuniões com os partidos, a Provedora de Justiça, a presidência da Assembleia da República, o Ministério do Ambiente ou Marcelo Rebelo de Sousa, parece evidente que, pelo caminho, terão criado algo que vai para além disso.
Sai a riqueza, saem as pessoas
Quer José Maria Pires quer Paulo Meirinhos, membro da banda Galandum Galundaina e deste colectivo cidadão, consideram que a falta de gente, de massa crítica, naquele território fronteiriço, se deve, em boa parte ao facto de a sua maior riqueza, a energia que o Douro é capaz de produzir, ter sido drenada para a sede da EDP, em Lisboa. Nestas sete décadas, Miranda perdeu metade da população, mas uma parte dela, “gente inteligente, inconformada”, conseguiu, mesmo que de longe, reunir-se em volta desta missão: reter, na região, verbas que possam suportar um desenvolvimento sustentando na história (e Zamora e Alcanizes, lugares fundacionais de um país, ali tão perto), na Cultura (ninguém mais se pode gabar de ter a segunda língua de Portugal) e no Ambiente (o Douro Internacional é um santuário de biodiversidade).
Com apoio das experiências muito distintas de muitos dos subscritores do seu manifesto, o movimento pretende, a seguir, elaborar um plano estratégico assente naqueles três pilares, que possa ser um contributo para a acção dos municípios de Miranda e Bemposta. No primeiro, Rui Nunes diz não enjeita esta vontade de participação, mas insiste que se a cultura mirandesa tem a divulgação que tem, é graças ao município, que apoia as associações no terreno. “Do Estado, até agora, não tivemos nada”, assinala, insistindo que, historicamente, o país nunca quis associar a sua estratégia energética ao desenvolvimento dos territórios onde assentava a sua capacidade de produção.
Há muito potencial a explorar
José Maria Pires afirma que na audiência que lhes foi concedida pelo presidente da república lembrou a Marcelo que este deveria dedicar pelo menos um dia por ano do seu mandato ao Mirandês, a segunda língua do Estado Português que, vinte anos depois de promovida a esse píncaro ainda não tem sequer o seu estatuto regulamentado. A Cultura é um enorme factor de desenvolvimento, insiste este alto quadro da AT. Os Galandum Galundaina, que saltaram de Miranda para o mundo que gosta de música celta, por serem de Miranda, não diriam de outra forma, na língua que sempre falam nos concertos. O potencial está lá – mesmo que às vezes escondido, como nas casas dos engenheiros da barragem, de um desafiante gesto modernista, que a EDP mantém decadentes, em Picote. Falta capacidade de investimento, e gente que o queira explorar.
O que este grupo, como o município, rejeita, é que o território seja extorquido das receitas que deveria receber, ficando com os impactes ambientes da exploração das barragens por resolver. Há crateras de pedreiras abertas para a construção destas infra-estruturas que nunca foram alvo de requalificação ambiental, queixam-se, denunciando que mesmo mais recentemente, aquando da ampliação da capacidade de Picote, “foi deixado um aterro de escombros numa encosta do Douro, na área classificada”. Estes danos têm de ser reparados, insistem.