E se as pessoas fossem pagas para receber a vacina da covid-19?
Caso a vacinação voluntária não seja suficiente para atingir a imunidade de grupo, especialista em ética lança uma proposta: pagar às pessoas para que sejam vacinadas. Mas será esta mesmo uma opção a considerar?
O mundo aguarda ansiosamente por vacinas contra a covid-19. Durante esta espera, tem surgido a questão se esta vacina deve ser obrigatória. Num artigo publicado na revista Journal of Medical Ethics, o especialista em ética Julian Savulescu considera que a vacinação obrigatória – incluindo a da covid-19 – pode ser eticamente justificada se as ameaças à saúde pública forem graves e a vacina for eficaz. Mas, nesse mesmo artigo, lança uma proposta, que diz que pode ser eticamente preferível à vacinação obrigatória: pagar às pessoas para receber a vacina. Há outros especialistas que acham que é uma proposta que deve ser discutida, embora pensem que não está culturalmente enquadrada em certos países, ou consideram até que não faz sentido.
No geral, Julian Savulescu, director e professor do Centro Uehiro para Ética Prática da Universidade de Oxford, defende que a vacinação deve ser voluntária, como afirma num comunicado sobre o artigo. Contudo, se vacinação voluntária não resultar, há que partir para planos B.
Um dos planos B pode ser tornar a vacinação obrigatória. Para Savulescu, a vacinação obrigatória pode ser eticamente justificada se estivermos perante uma situação em que se reúnem quatro condições: se for uma grave ameaça à saúde pública; a vacina é segura e eficaz; os prós compensarem os contras e essa opção for melhor do que outras alternativas; e a coerção for proporcional.
E isto aplica-se à covid-19? Sobre se esta doença é suficientemente grave, o especialista em ética diz que são necessários mais dados sobre a covid-19, bem como um juízo de valor sobre se a sua gravidade justifica que a vacina seja obrigatória. Mas acaba por considerar que é uma grave emergência de saúde pública. Quanto à eficácia da vacina, ainda não foram finalizados os ensaios da última fase dos ensaios clínicos e não temos todos os dados disponíveis. Julian Savulescu refere que é improvável que o risco seja zero, mas que uma vacina pode ser eficaz a reduzir a transmissão comunitária ou a evitar a doença nas pessoas.
Tendo como um dos principais argumentos chegar rapidamente à imunidade de grupo, o especialista em ética também considera que a vacinação obrigatória pode levar a uma perda menor do bem-estar ou da liberdade do que outras estratégias, como as quarentenas ou rastreamento através de dispositivos electrónicos. Por fim, explorou outras intervenções coercivas (como quando não se tem cinto de segurança ou se paga impostos) para saber se a coerção na vacinação obrigatória poderia ser proporcional. Concluiu que uma “penalização modesta” por não ser vacinado numa emergência de saúde pública grave se justificaria, como multas ou restrições à movimentação.
“Se a ameaça à sociedade for grave, a vacina for suficientemente segura e eficaz, outras medidas coercivas não funcionarem e os custos forem razoáveis (pequenas multas), então a vacinação obrigatória pode ser justificada. É uma medida de último recurso”, resume ao PÚBLICO Julian Savulescu. O investigador diz que a obrigatoriedade se justifica para evitar que uma pessoa prejudique outra. “A covid é uma doença letal – é como disparar uma bala para o ar. Podemos evitar que as pessoas a atirem de forma aleatória para os outros.” Além disso, considera que a alternativa à vacinação obrigatória pode ser o isolamento obrigatório, o que também envolve coerção.
Já no artigo salvaguarda que “ainda não podemos dizer se a medida da vacinação obrigatória da covid-19 é eticamente justificada até que possamos avaliar a natureza da vacina” ou a probabilidade do custo/benefício das alternativas, mas que “certamente é viável que possa ser justificada”. “A covid-19 é quase algo único devido à gravidade do problema a nível global: não há apenas um custo em termos de vidas, há também grandes consequências económicas, na saúde e no bem-estar devido a várias medidas de controlo do vírus, incluindo do confinamento”.
A autonomia de cada um
Paulo Santos, investigador do Cintesis (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde), não acha que a questão da obrigatoriedade tenha de ser colocada em relação à vacina da covid-19, como também não acha que deva ser colocada em relação às outras vacinas. Como se olha então para esta questão do ponto de vista ético? Paulo Santos enumera quatro princípios: o do benefício; o da não maleficência; o da justiça; e o da autonomia.
Primeiro, o princípio da beneficência diz que tem de haver um benefício que seja inerente à própria proposta. Neste caso, este princípio depende da eficácia que terá a própria vacina e que é demonstrado através dos resultados dos estudos. “Só aceitaremos que uma vacina entre no mercado se se demonstrar que é benéfica e que confere protecção em relação à doença”, assinala.
Depois, terá de se considerar o princípio da não maleficência, que complementa o do benefício: “Uma situação pode fazer bem, mas não pode fazer mal”, nota. Portanto, quando falamos de benefício temos de falar ao mesmo tempo de dano e perceber qual o custo desse benefício. Quais poderão ser os efeitos tóxicos ou indesejáveis da introdução da vacina?
De seguida, há o princípio da justiça: quando se propõe uma medida, tem de se perceber que estamos a introduzir uma medida nova na comunidade. “Este princípio vem lembrar-nos que tudo o que fazemos tem um impacto na comunidade.” Neste caso, podemos ter uma vacina eficaz e com poucos efeitos secundários, mas existem questões de equidade que têm de ser garantidas, como a sua distribuição.
Por fim, há o princípio da autonomia, isto é, a liberdade que a própria pessoa tem para decidir em relação à sua própria saúde. Cada pessoa deve ser livre de decidir e deve respeitar-se a sua vontade livremente expressa, o que significa que essa pessoa está na posse de toda a informação necessária para fazer a sua opção. Na obrigatoriedade da vacina está sobretudo em causa a questão da autonomia e se a pessoa é autónoma para decidir se toma a vacina, sendo que há ainda subjacente a questão da imunidade de grupo e do benefício altruísta para diminuir a transmissão da doença. Contudo, neste momento, ainda não temos respostas suficientes sobre o benefício colectivo da vacina, assinala o investigador. Os dados disponíveis não permitem que se faça essa avaliação.
“Não temos dados suficientes ou argumento ético para uma obrigatoriedade da vacinação”, considera Paulo Santos. “Isto não invalida que se reconheça que existe um benefício e que esse benefício se traduza em educar as pessoas para aderir à vacinação.” Portanto, para si, deve ser apresentada como proposta (ou seja, voluntária) e deve ser explicado bem às pessoas qual o benefício de se estar a desenvolver vacinas e de se vacinar uma proporção significativa da população. “Fazê-lo de uma forma obrigatória é pior e pode ser mais gerador de controvérsia do que ensinar às pessoas e dar-lhes oportunidade de decidir sim ou não.”
Além disso, destaca que, em Portugal, há uma percepção da população sobre o benefício das vacinas de forma geral. “Não tenho dúvidas de quando a vacina estiver disponível que vamos ter uma quantidade enormíssima de pessoas a quer fazer a vacinação.”
A excepção de certos grupos
Já Henrique Lopes, coordenador de investigação científica da Unidade de Saúde Pública do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, considera que deve ser obrigatória e nota que esta é a sua opinião pessoal. No fundo, assinala que a obrigatoriedade nos remete para um confronto entre o direito da pessoa e o do colectivo e enumera três razões.
Primeiro, refere que “a sociedade tem o direito a defender-se mesmo que uma pessoa discorde”, pois, além de correrem riscos consigo próprias, as pessoas podem causar danos a terceiros ao não se vacinarem. Segundo, deve ter-se legitimidade de nos protegermos a nós e aos que nos são próximos de alguém que não é socialmente responsável – isto é, das pessoas que não querem ser vacinadas.
Em terceiro lugar, a obrigatoriedade pode ter uma função de cidadania e de respeito pelas pessoas. Portanto, o investigador considera que tornando a vacina obrigatória, estamos a contribuir para proteger pessoas – como as que têm menor literacia em saúde ou que são emocionalmente mais frágeis – de fazerem mal a si próprias. “É uma forma de proteger essas pessoas.”
Henrique Lopes exemplifica que a pandemia foi muito politizada e que certos sectores ideológicos se estão a aproveitar dela para ganhar terreno, como sectores anticiência. “Quando estão assustadas, as pessoas tendem a reagir de forma emocional”, realça. “As pessoas que são mais frágeis em termos de literacia são mais facilmente predadas por estes movimentos.”
Mesmo assim, avisa que, de forma geral, a vacina deve ser obrigatória, mas “com cuidado” e excluiria alguns grupos. “Não pode ser uma obrigatoriedade cega. Há pessoas que não podem receber vacinas por problemas de saúde.” Defende assim que deve ser obrigatória para a população em geral com algumas excepções, nomeadamente ao nível da saúde. “Creio que nenhum país começou a discutir quem deve ficar de fora no caso de haver obrigatoriedade e isso é grave.”
A pouco e pouco, a discussão sobre se a vacinação deve ser obrigatória (ou não) vai começando. Sobre a vacina poder vir a ser obrigatória, em Agosto, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, afirmou que a decisão “não está fechada”. “A legislação portuguesa permite que em situação de epidemia e para defesa da saúde pública uma vacina possa ser obrigatória mas, mais uma vez, eu creio que esta decisão também terá de depender de uma análise profunda da sociedade, não só do sector da saúde, e também das características da vacina”, disse numa conferência de imprensa. Contudo, na altura, especialistas ouvidos pelo PÚBLICO não partilham exactamente essa ideia e referiram que seria necessária uma lei da Assembleia da República para tornar obrigatória essa vacina.
Mas há quem levante outras propostas além da obrigatoriedade da vacina. No seu artigo, Julian Savulescu propõe: e se se pagasse às pessoas para serem vacinadas? “A vacinação obrigatória pode ser eticamente justificada, mas, quando os riscos são mais incertos, o pagamento para a vacinação (em dinheiro ou em género) pode ser uma opção eticamente superior”, lê-se.
O investigador explica ao PÚBLICO que, se a vacinação voluntária não for suficiente (se as pessoas suficientes não quiserem ser vacinadas), se pode proteger os serviços de saúde e garantir a imunidade de grupo ao pagar às pessoas para serem vacinadas. “Isto poderia [atrair] os mais resistentes [à vacinação] ou os que estão mais em risco (como os idosos)”, aponta. “As pessoas podiam alcançar protecção mais depressa. Quanto mais tempo demorar, mais pessoas morrerão. Os confinamentos estão a destruir as economias e a matar pessoas que têm outras doenças.”
Quanto ao pagamento, Julian Savulescu diz que seria um trabalho dos economistas torná-lo justo, mas pensa que pequenos incentivos bastariam para mudar o comportamento das pessoas. Sugere ainda que o pagamento possa ser feito financeira e não financeiramente, como poder deixar de usar máscara ou dar compensações no tratamento dos filhos.
Qual é então a grande vantagem desta proposta? “É preferível do que tornar a vacinação obrigatória, o que pode incluir multas ou outros custos”, responde o investigador, adiantando que pode tornar-se uma medida mais barata do que outras alternativas. “As pessoas podem ainda fazer uma escolha livre e, se estão preocupadas com os efeitos da vacina, podem recusar-se a tomá-la.”
Até agora, este tipo de abordagem nunca foi aplicado à vacinação, mas Julian Savulescu exemplifica que, nos Estados Unidos, esta estratégia tem uma elevada eficácia no tratamento da toxicodependência, em que se paga para que toxicodependentes abandonem as drogas e os pagamentos são baixos. Sobre se algum país já propôs pagar às pessoas para serem vacinadas, o especialista em ética responde: “Nenhum país o propôs, mas já há algum debate”, indica Julian Savulescu. “Portugal poderia ser o líder, tal como foi com a legalização de drogas.”
“Não está culturalmente enquadrada”
Paulo Santos refere que esta proposta levanta uma questão de justiça social. E questiona-a: vamos pagar o quê e para quem? Qual o sentido deste pagamento? Se a pessoa é responsável pela sua saúde, vamos ser todos a pagar a saúde da pessoa porquê e com que base? “Não tenho a certeza que consigamos descrever um contexto nesta doença que justifique que haja um esforço colectivo além do pagamento da própria vacina. É como estarmos a pagar para as pessoas irem às aulas e elas depois vão porque se não forem não recebem o dinheiro.” E se o incentivo for o de se deixar de usar máscara? “Isso faz algum sentido? [A vacina e a máscara] são medidas complementares e não auto-excludentes”, responde.
Por sua vez, Henrique Lopes considera que, mais do que as conclusões a que Julian Savulescu possa chegar, esta proposta tem o mérito de colocar em discussão um tema que será um tópico quente muito em breve. “Numa altura em que ainda não está quente, é possível ter um pensamento mais calmo e sensato e não ao sabor da opinião pública.” Embora seja uma proposta que mereça ser discutida, não está culturalmente enquadrada, refere. Para o investigador, esta proposta está muito relacionada com os modelos de saúde anglo-saxónicos. “Tenho dúvida de que a sua transposição para outra cultura resulte”, questiona, acrescentando que em Portugal não temos essa experiência e, por isso, não se sabe se resultaria.
Esta abordagem pode ainda abrir “precedentes complicados”. “Daqui para a frente pode ficar-se à espera de se receber em vez de ser um acto clínico corrente”, avisa. Mais: em sistemas de saúde já depauperados pode levar a que se tenha um custo adicional. “Era melhor pegar nesse dinheiro e usá-lo em acções de educação para a saúde.” Afinal, para si, o grupo mais vulnerável neste momento em relação às vacinas é o do grupo das “pessoas assustadas que estão contaminadas com fake news e os sustos não se resolvem com dinheiro”. Tem de se desmontar o medo. É aí que entra a literacia e a educação.