Entram pobres e saem ricos. Será possível condenar políticos por esconderem bens?
Juízes apresentaram solução para contornar problemas de constitucionalidade do enriquecimento ilícito. Falta saber se Governo está disposto a incluí-la na estratégia contra a corrupção.
Não podia ter sido mais desencorajador o arranque da intervenção do procurador jubilado Euclides Dâmaso no debate que teve lugar esta terça-feira em Lisboa para analisar a estratégia de combate à corrupção do Governo. “Tenho uma sensação de perda de tempo ao participar nesta conferência”, lançou para a assistência, parte da qual presencial, numa referência à “sina lusitana” de muito se discutir para nada se fazer.
Adepto confesso dos sistemas de justiça que aceitam reduzir as penas ou mesmo isentar delas os criminosos arrependidos em troca da denúncia dos seus cúmplices, Euclides Dâmaso teme que o Ministério da Justiça não vá tão longe quanto podia na criação em Portugal de legislação nesse sentido. E as águas estão profundamente divididas, como admitiu, no final da conferência, a titular da pasta, Francisca van Dunem, ao sumarizar as opiniões recebidas durante o período de consulta pública da estratégia: “As opiniões extremaram-se no que respeita a dispensar os arguidos [arrependidos] de pena: uns acham que a estratégia do Governo vai longe demais, numa tentativa de alcançar resultados no combate à corrupção a qualquer preço, enquanto outros apelidam a proposta de anémica, por medo do fantasma da delação premiada”.
Para Euclides Dâmaso, que fala numa “tempestade perfeita” no que concerne à corrupção em Portugal, se as autoridades não puderem garantir aos arrependidos que ficam isentos de julgamento ficarão impotentes para quebrar os pactos de silêncio entre os criminosos, que assim nunca terão incentivos para se denunciarem uns aos outros. “Levá-los a julgamento é desmantelar qualquer intenção de colaboração com a justiça que possam ter”, observou. Do outro lado da barricada, outros oradores, como Frederico Costa Pinto, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, alertaram para os diferentes perigos de alguns dos chamados mecanismos de colaboração premiada. Subtrair aos juízes o poder de condenarem determinada pessoa só porque esta se denunciou os seus cúmplices não é, para o académico, a melhor solução: “Transforma o tribunal numa secretaria qualificada” e “subverte o modelo de justiça” que vigora em Portugal. Os magistrados não se podem limitar a carimbar uma solução escolhida pelo poder legislativo, defendeu.
Já impor aos juízes a obrigação de atenuarem as penas que aplicam a casos deste tipo parece ser mais aceitável. “Mas isto não pode significar um desinvestimento na investigação criminal por parte do poder executivo”, avisou Frederico Costa Pinto, porque o risco de captura dos interesses do Estado é real, se os inquéritos passarem a depender em demasia destas confissões.
“O direito premial não é varinha mágica. E pode trazer problemas significativos”, resumiu. “Não é uma solução milagrosa”, assentiria mais tarde outro professor de Direito, Paulo Sousa Mendes, da Universidade de Lisboa, ciente, porém, de que este tipo de métodos irá mesmo ganhar terreno. Apesar de potenciarem perigos como o uso e abuso da prisão preventiva para obter a colaboração dos suspeitos, como assinalou o advogado Rui Patrício. Mas não é isso que já hoje acontece, mesmo sem colaboração premiada? – questionou este jurista.
Líder do grupo de trabalho que gizou a estratégia do Governo, a penalista Maria João Antunes deixou uma declaração solene: sejam quais forem as opções legislativas que venham a concretizar-se, nunca foi intenção destes especialistas instituir em Portugal uma delação premiada ao estilo brasileiro. “Isso nunca esteve na nossa mente”, reiterou.
Sensível às críticas de que o Governo tinha omitido por completo da sua estratégia a questão do enriquecimento ilícito, o Ministério da Justiça incluiu na conferência desta terça-feira este tema caro à Associação Sindical dos Juízes Portugueses. E foi pela boca do seu presidente, Manuel Ramos Soares, que se ficaram a saber mais alguns detalhes sobre a forma como podem ser ultrapassados os obstáculos constitucionais às tentativas de criminalizar as condutas de quem “entra pobre e sai rico” da política.
A ideia passa por punir não o enriquecimento em si mas a omissão de justificações plausíveis para esse facto. Bastará, no entender do sindicato dos magistrados judiciais, acrescentar aos actuais dispositivos legais que regulam a fiscalização dos rendimentos e património dos titulares de cargos públicos o dever de justificar a aquisição de património durante o exercício do cargo acima de certo valor (e não apenas declarar a aquisição desse património, como agora). A violação desse dever passará a ser um crime com uma moldura penal não inferior à da fraude fiscal, preconizou Ramos Soares. A fraude fiscal é punível com até três anos de prisão ou então com multa, mas esta moldura penal pode subir no caso de o crime ser considerado qualificado.
Nos casos em que os bens não estejam em nome do seu verdadeiro dono, uma vez provada a sua titularidade o criminoso será punido não por se presumir que enriqueceu ilicitamente, mas por ter enriquecido sem o declarar e justificar, preconizam também os juízes. Afinal, recordou Ramos Soares, sem nunca mencionar Isaltino Morais, “já se provou em Portugal que o titular de um cargo público tinha o dinheiro em nome de um sobrinho”.
“Não consigo perceber a diferença entre esta proposta e a lei” em vigor, que já pune aos políticos que não entregam a declaração de rendimentos, comentou Francisca van Dunem. A resposta de Ramos Soares chegou célere: “Não se trata só de punir essa desobediência, mas de provar a intenção destas pessoas de ocultar rendimentos” cuja proveniência passa a ser obrigatório justificar, pelo menos enquanto exercerem determinados cargos. A Associação Sindical de Juízes Portugueses quer ainda que aos arguidos condenados pelo crime de ocultação de riqueza possa ser decretada a perda alargada dos seus bens.