Uma votação contaminada pelo ridículo
Na votação do OE há avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.
Por muito esforço que se faça para entender o que se passa por estes dias na Assembleia da República, consegue-se entender pouco. Esperava-se que a corrida contra o tempo até à votação final global do Orçamento do Estado acusasse a gravidade do estado de emergência e a solenidade de um momento ansioso da nossa vida colectiva. Não é isso que está a acontecer.
Com 1365 propostas de alteração ao Orçamento condensadas num guião de 2700 páginas, as diferentes bancadas esforçam-se tanto para exibir a sua capacidade de se fazer ouvir que criaram uma opereta com um libreto ridículo, em que a pressa se impõe à reflexão e a vaidade ao interesse do país.
Cabe tudo na barafunda. Há dinheiro ou pedidos de dinheiro para espécies autóctones, para os bombeiros, investimentos no Pinhal de Leiria, propostas de aumento do IVA nos fertilizantes ou para “proteger as reservas naturais dos impactos da poluição luminosa no ambiente”. Há exigências para se instalar a Entidade da Transparência ou o Observatório Independente para a Monitorização do Discurso de Ódio e Ciberbullying.
Há um pedido de um plano anual de controlo da qualidade das refeições servidas nos estabelecimentos da administração pública. Há taxas e taxinhas, como a que vai penalizar em 30 cêntimos as embalagens descartáveis de take-away na restauração, um sector que, como se sabe, transborda de prosperidade. E há até a criação de um provedor do Animal, mas não um provedor qualquer: um “que seja a voz dos animais e não do sector económico”, como atestou uma deputada do PAN.
Cada partido se acha no direito de ir à feira e negociar tudo e mais alguma coisa. A tenda montada pelo PS favorece claramente os clientes do PCP para levar o Orçamento a bom porto e deprecia todos os outros, principalmente o cliente que questionou os preços e a qualidade do produto – o Bloco, claro está. Há avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.
Será que os nossos deputados não deram conta de que o país vive em estado de emergência? Faz sentido este festival de medidas que desviam as atenções das grandes decisões para proteger os cidadãos mais vulneráveis, a economia, o emprego, o SNS ou a educação? Há rituais em democracia que oscilam entre a comédia e o drama e assim escapam à nossa compreensão. Mas ver os deputados perderem-se em questões acessórias para fazer prova de vida não serve apenas para tornar o Orçamento num mastodonte ingovernável: serve também para o desacreditar pelo ridículo.