O azar (de longo prazo) de procurar o primeiro emprego no meio de uma crise
Em anteriores crises, como a de 2008 a 2012, os jovens portugueses que tentaram nessa altura entrar no mercado de trabalho viram os seus rendimentos penalizados durante um longo período. A história pode repetir-se na crise da pandemia.
É algo que já aconteceu em anteriores crises e que tem ainda mais motivos para se repetir no actual cenário de contracção económica por causa da pandemia: aqueles que têm o azar de entrar no mercado de trabalho precisamente a meio de uma recessão correm o sério risco de ter de carregar esse fardo durante muito tempo, sob a forma de salários persistentemente mais baixos ao longo de vários anos.
É o chamado “efeito cicatriz” das crises no mercado de trabalho, que está documentado e comprovado em diversos estudos feitos ao longo das últimas décadas, tanto a nível internacional, como especificamente para Portugal.
Análises realizadas às principais crises económicas das últimas décadas (e aos anos que lhes se seguiram) em vários países do mundo revelam que aqueles que procuram o seu primeiro emprego no auge da crise se deparam com “grandes efeitos iniciais nos rendimentos, na oferta de trabalho e nos salários que tendem a dissipar-se 10 a 15 anos mais tarde”, assinala o economista da Universidade da Califórnia Till von Wachter, num estudo realizado este ano e que procura fazer uma síntese do conhecimento científico actual sobre esta matéria, numa altura em que este tema pode voltar a ser relevante.
São vários os exemplos de crises em que esse efeito cicatriz foi muito claro e, em média, nos casos analisados pele estudo de Till von Wachter, um aumento do desemprego numa recessão – um aumento entre quatro e cinco pontos percentuais da taxa de desemprego – tem como resultado para quem se licenciou numa universidade nessa altura um rendimento inicial 10% mais baixo. E pior do que isso, essa desvantagem logo à partida não é corrigida assim que a economia recupera: a perda relativa de rendimentos destes trabalhadores demora, em média, entre 10 e 15 anos a ser eliminada.
Há ainda diversos estudos, assinala o mesmo economista, que apontam para, além da perda de rendimento, impactos negativos persistentes em indicadores como a taxa de mortalidade, incidência de criminalidade ou o consumo de álcool.
Para Portugal, também há estudos realizados sobre esta matéria. Em 2010, Pedro Martins, economista que foi secretário de Estado do Trabalho entre 2011 e 2013, concluiu (em conjunto com Gary Solon e Jonathan Thomas), com base em dados referentes ao período de 1982 a 2007, que, em Portugal, os salários de entrada no mercado de trabalho foram 1,8% mais altos quando a taxa de desemprego era 1% mais baixa, o que revela bem o problema que constitui encontrar um primeiro emprego quando o desemprego é muito alto.
Mais recentemente, em Junho, captando já a crise da troika e analisando o impacto nos salários a prazo, o economista irlandês Mark Regan chegou a conclusões semelhantes para o conjunto de 13 países europeus, incluindo Portugal. Uma taxa de desemprego de 1% mais alta retirou, em média, 2% ao salário de entrada de um trabalhador. Nos oito anos seguintes, conclui ainda este estudo, a penalização subsiste, sendo de cerca de 1%. Apenas ao fim de dez anos é que o diferencial desaparece.
Em particular, no que diz respeito ao período da Grande Recessão e da crise do euro, o economista nota que os países mais afectados (Portugal, Itália, Grécia, Espanha e Irlanda) foram palco de uma penalização particularmente forte para os estreantes no mercado de trabalho: os novos licenciados registaram perdas situadas entre os 23% e os 13% em cada um dos primeiros dez anos da sua carreira.
Mark Regan não apresenta dados específicos para Portugal, mas uma dissertação de mestrado realizada este ano na Universidade Católica por Catarina Lopes, e que faz parte do trabalho a ser realizado pelo centro de investigação PROSPER, analisa em concreto aquilo que aconteceu no país durante e a seguir à crise que assolou o país de 2008 a 2012.
A conclusão é, mais uma vez, que os estudantes que se licenciaram nesse período “foram negativamente afectados pelas condições iniciais, mesmo depois de estas condições terem deixado de existir”. A penalização nos rendimentos foi de cerca de 8% no primeiro ano, reduzindo-se progressivamente nos anos seguintes, mas “estando ainda presente em 2017. “Os resultados apresentados sustentam a ideia de impactos negativos persistentes e significativos da Grande Recessão em Portugal nos jovens”, conclui o estudo.
Nova crise, o mesmo problema?
Não há ainda dados disponíveis sobre aquilo que está a acontecer aos salários de quem está agora a entrar no mercado de trabalho e não é obviamente possível saber com certeza o que é que irá acontecer a prazo. No entanto, já há alguns sinais de que aquilo que aconteceu no passado se possa agora estar a repetir.
Quando se olha para os números do inquérito do emprego publicados pelo INE, é possível verificar que, como em anteriores crises, os empregos que mais estão a diminuir são os com uma menor antiguidade, inferior a seis meses, e que é no escalão etário mais jovem, até aos 25 anos, que se perderam mais empregos [ver caixa no final do texto]. Isto indicia que, para um número significativo de jovens, as portas do mercado de trabalho se fecharam com a crise, algo que, inevitavelmente se acabará por reflectir nos salários oferecidos.
“Os jovens que procuram neste momento o seu primeiro emprego têm pela frente um panorama bem mais difícil no presente e depois isso acaba por persistir no futuro, porque a trajectória depois também é mais difícil”, diz Joana Silva, que orientou a dissertação de mestrado que assinala a existência de um “efeito cicatriz” durante a crise anterior e dirige o centro de investigação PROSPER.
Esta economista assinala ainda a existência de mais motivos para que a história se repita agora. “O facto de a recessão ser desta vez mais sincronizada em todos os países e de a situação estar difícil em todo o lado faz com que a emigração não seja uma alternativa para alguns jovens, como aconteceu na crise anterior”, diz, assinalando ainda que, do lado das empresas, pode também haver efeitos de longo prazo. “Se as empresas, por causa das características desta crise, começarem a alterar a combinação de trabalhadores que usam e se deixarem de ser intensivas em trabalho para passarem a ser em capital, isso são alterações que as empresas depois têm dificuldades em reverter. Nestes casos, a consequência é uma retoma sem mais empregos, algo que é penalizador para todos os trabalhadores, e em particular os mais jovens”, afirma.
Para João Cerejeira, professor na Universidade do Minho, é também evidente a inevitabilidade de um efeito inicial negativo para os novos trabalhadores, sendo que a rapidez com que esse efeito se dissipa depende grandemente da força da retoma.
Este economista, no entanto, vê algumas diferenças importantes entre a actual crise e a anterior. Por um lado, enquanto do ponto de vista dos salários a crise anterior afectou particularmente a classe média e a classe média alta, esta está a afectar mais as pessoas com mais baixos rendimentos.
E a nível sectorial, se em 2011 a crise começou na construção mas rapidamente se espalhou a toda a economia, agora “poderá haver sectores em que estão a contratar maciçamente, como a saúde, as tecnologias da informação, ou mesmo a construção e alguns sectores da transformação, mas ao mesmo tempo há actividades, como o turismo ou a restauração, que são fortemente penalizadas”. Será aqui que se poderá desta vez concentrar o efeito negativo sobre aqueles que iniciam agora a sua vida activa.
De uma coisa não há dúvida, esta perda persistente que podem vir a sentir os trabalhadores mais jovens resulta também, como avisa a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em “danos grandes e de longo prazo nas nossas sociedades”. Por isso, políticas públicas que contrariem este feito são desejáveis.
O economista Miguel Gouveia, na conferência do Banco de Portugal realizada na passada segunda-feira, defendeu que, para minimizar este efeito persistente negativo, seria importante tomar medidas para dinamizar as novas contratações por parte das empresas, sugerindo, por exemplo, a possibilidade de as empresas poderem reduzir a parte fixa do salário, eventualmente para um valor mesmo abaixo do salário mínimo, mas aumentando em contrapartida a parte variável. Seria uma partilha do risco entre trabalhador e empresa que poderia conduzir a uma menor quebra no número de novas contratacções.
Já para João Cerejeira, “a política pública não pode fazer muito em relação aos salários que são praticados agora”, mas pode antes “ter um papel importante na reconversão” dos trabalhadores novos ou velhos agora afectados. “A crise vai ser persistente e é preciso contribuir, nomeadamente com o apoio à formação, para a transferência de trabalho de sectores onde a crise vai ser persistente para sectores que estão melhores”, defende o economista.