Covid-19: reinfecções crescem e podem ameaçar eficácia da vacina
Há mais de duas dezenas de casos confirmados e várias centenas de suspeitas de reinfecção por SARS-CoV-2 no mundo, mas há também ainda muito por esclarecer sobre estas situações que os cientistas estão a investigar.
São casos ainda considerados raros e difíceis de confirmar, mas também já se sabe que os casos de reinfecção são possíveis. Há apenas 26 casos confirmados em todo o mundo, mas muitas centenas de suspeitas, numa lista onde poderíamos encontrar os casos já noticiados de três doentes em Portugal que podem ter sido infectados duas vezes. Para a confirmação é preciso, no entanto, os resultados da sequenciação do vírus que mostrem que aquela pessoa foi infectada por duas variantes distintas. Os cientistas ainda não sabem qual é o peso das reinfecções na epidemia, mas se se provar que – tal como acontece com a dengue – a segunda infecção por uma nova versão do vírus é mais agressiva do que a primeira, estes casos podem ter um impacto na eficácia das vacinas que estão (ou já foram) a ser desenvolvidas.
Tal como os outros números associados à infecção por SARS-CoV-2, também o registo dos casos de reinfecção tem aumentado. No mundo, depois de um primeiro caso oficialmente confirmado em Hong Kong ainda em Agosto, há agora 26 reinfecções confirmadas, segundo o rastreador holandês (covid-19 reinfection tracker) que regista estes casos com alguns detalhes. Porém, há também mais de 570 casos suspeitos a partir de situações em que um doente infectado recuperou, fez um teste que deu negativo, mas algum tempo depois o teste voltou a dar um resultado positivo. Pelo menos, três destas suspeitas dizem respeito a doentes em Portugal, mas a confirmação da reinfecção só será possível com o resultado de testes de sequenciação ao vírus.
Para que um caso seja considerado como uma suspeita de reinfecção, um doente tem de ter tido duas vezes um teste (PCR) de reacção positiva com pelo menos um mês livre de sintomas no intervalo. Para a confirmação, é preciso mais do que isso. “Para serem validados têm de ser confirmados por sequenciação do vírus e demonstrar que têm um número suficiente de mutações para provar que a primeira infecção é bastante distante da segunda”, confirma ao PÚBLICO a geneticista Luísa Pereira, investigadora do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto. Os 26 casos confirmados passaram por estes testes e vários foram até descritos como os resultados de sequenciação publicados em revistas científicas.
Mas se não for uma reinfecção que outra explicação pode existir para uma pessoa voltar a ficar doente? “Há alguns vírus que têm esta capacidade de ficarem latentes no nosso organismo e não se manifestarem, passam despercebidos ao sistema imune e não há qualquer sintoma. Ainda não está provado que este vírus não tem essa capacidade”, explica a cientista. Os vírus, esclarece ainda, podem acordar no organismo de uma pessoa, adormecer e depois voltarem a acordar. Mas, nestes casos, não se trataria de uma nova infecção, mas da mesma com uma dinâmica peculiar.
“Há vários casos muito prolongados no tempo, mais de 90 dias, de pessoas que têm alternadamente um resultado positivo, negativo, volta a ser positivo, de novo negativo. Nestas pessoas acha-se que há uma continuidade da presença de algum material genético do vírus que a infectou a primeira vez”, diz Luísa Pereira.
Estes resultados instáveis podem estar associados a problemas na colheita das amostras, mas também podem estar relacionados com a progressão da infecção no organismo. A certa altura, o vírus pode já não estar numa partícula integra (e infecciosa) mas vai, ainda assim, libertando restos do material genético que serão o suficiente para, nalguns casos, originar um resultado positivo. Durante quanto tempo este efeito pode durar? Não se sabe ainda. “Os testes que têm sido feitos mostram que, em princípio, a partir da maior parte das amostras mais tardias já não se consegue cultivar o vírus em laboratório, o que nos indica que podem ser apenas restos do material genético e não o vírus íntegro”, explica a geneticista.
Outra coisa que também ainda não está clara é a relação destes casos de reinfecção com a gravidade da doença e é aqui que podemos deparar com obstáculos sérios para a eficácia da vacina. Ainda que alguns dos casos oficialmente confirmados digam respeito a situações com sintomas da doença ligeiros, há também pessoas que viram o seu estado de saúde agravado da primeira para a segunda infecção. “À semelhança do que acontece para outros vírus, como a febre da dengue, para o SARS-CoV-2 muitos dos sintomas graves da doença estão associados a uma resposta exagerada do nosso sistema imune”, confirma Luísa Pereira, fazendo referência à tempestade de citoquinas em resposta ao vírus que acaba por agravar o estado de um doente infectado.
Aliás, a investigadora refere que esta semelhança com a febre da dengue pode trazer problemas ainda mais graves. É que, diz-nos a cientista, que há hoje quatro estirpes da dengue (há uma quinta a emergir) e que quando alguém é infectado com uma estirpe fica imune para toda a vida contra aquela, mas quando é infectado por outra estirpe diferente adoece de forma bastante mais grave. “Isto pode acontecer para o SARS-CoV-2”, admite, afirmando que se esta hipótese se verificar com a covid-19 isso pode ter um impacto importante na eficácia das vacinas.
No fundo, ao imunizar uma pessoa para uma determinada variante deste vírus podemos estar a fazer com que essa pessoa reaja de forma bastante mais grave a uma infecção posterior com uma versão diferente. “Ainda não sabemos se é isso que vamos ver com a SARS-CoV-2, mas se se confirmar isso tem implicações sérias a nível da vacinação”, diz Luísa Pereira que não quer ser alarmista e recorda ainda que um dos desafios da vacina da dengue foi precisamente garantir a protecção contra as quatro estirpes.
No primeiro caso de reinfecção conhecido (em Hong Kong), o homem acabou por desenvolver sintomas mais leves na segunda infecção, mas num outro caso também publicado numa revista científica um homem residente nos EUA viu o seu estado de saúde agravar-se consideravelmente na segunda infecção.
Seguir o rasto do SARS-CoV-2 pelo mundo não é fácil, com o vírus a acumular centenas de mutações, a maioria das quais sem um efeito significativo para o desfecho da infecção ou do contágio do vírus. Aliás, muitas dessas mutações acontecem apenas na pessoa infectada sem se propagarem para outros indivíduos. No entanto, este coronavírus já mudou a sua “apresentação” genética o suficiente para os cientistas o conseguirem separar em cinco grupos distintos. Chamam-lhes o 19 A, o 19 B, o 20 A, 20B e 20 C.
É demasiado cedo para afirmar que estamos perante cinco estirpes distintas do mesmo vírus, explica a geneticista Luísa Pereira, mas serão, pelo menos, versões diferentes ou variantes e que circularam em alturas e zonas diferentes. Assim, se os grupos 19 A e 19 B estão associados aos vírus presentes na região da China, os 20 A e 20 B já foram as variantes mais presentes na Europa e, por fim, o 20 C terá estado mais presente nos EUA e na América do Sul.
Há ainda muitas questões por esclarecer relacionadas com estas reinfecções reportadas em todo o mundo, sobre a sua importância e impacto na estratégia de vacinação e gestão da pandemia. Mas o que é facto é que os casos que até agora podiam ser considerados raros estão a acumular-se. Luísa Pereira nota que, se os três casos suspeitos em Portugal se confirmassem, a verdade é que três situações num contexto em que “apenas” menos de 3% da população foi infectada não serão casos tão raros assim, além dos casos de reinfecção que podem ter passado despercebidos, tendo sido assintomáticos ou encarados como doença mais prolongada.