Luís Macedo – a morte de um herói de Abril em tempos de pandemia

Lembrar às gerações mais novas, sobretudo aos que já nasceram depois de Abril, em liberdade, democracia e paz, quem foi Luís Macedo, é um dever dos que, como eu e muitos da minha geração, vivemos o antes e o depois da Liberdade.

“A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. 
Por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

John Donne

Vítima da covid-19, faleceu no passado sábado, dia 14 de Novembro, com 73 anos, o coronel Luís Macedo. Nos gráficos com que abrem diariamente os noticiários das televisões, é apenas mais um entre as mais de três milhares de vítimas mortais em Portugal. Com uma agravante: é que Luís Macedo faleceu num Hospital do Maputo, onde trabalhava há anos numa empresa de construção de pontes e estradas. Portanto, nem sequer como número figura entre os mortos no nosso país.

E, no entanto, foi no nosso país que ele teve, no dia 25 de Abril e nos meses que antecederam esse dia memorável, um papel decisivo no golpe que, em menos de 24 horas, pôs termo a 48 anos de ditadura.

Luís Macedo era então capitão de Engenharia no RE1, na Pontinha, e, desde finais de 1973, envolveu-se “de alma e coração”, como se diz, na conspiração para derrubar o Regime e acabar com uma guerra que se arrastava ao longo de 13 anos, teimosamente mantida por Salazar e Caetano, ao arrepio do bom senso e dos ventos da História, queimando e destroçando vidas, sacrificando famílias obrigadas a emigrar, empobrecendo e isolando o país, comprometendo o futuro de gerações, condenando os portugueses à violência moral e física da repressão e tornando cada dia mais difícil uma solução política para a autonomia das colónias, como mesmo os mais conservadores, civis e militares, de Sá Carneiro a Spínola, há muito reclamavam.

Lembrar às gerações mais novas, sobretudo aos que já nasceram depois de Abril, em liberdade, democracia e em paz, quem foi Luís Macedo, é lembrar-lhes o que foi a epopeia abnegada, heróica e generosa de um punhado de oficiais que, interpretando a vontade do povo, conseguiram durante menos de nove meses conspirar, em plena ditadura, para derrubar, em poucas horas, um Regime teimosamente repressivo e isolado do mundo, que nos impôs a mais longa ditadura dos tempos modernos. Lembrar-lhes o que foram esses tempos e quem foram estes heróis é um dever dos que, como eu e muitos da minha geração, vivemos o antes e o depois da Liberdade.

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Tive a felicidade de conhecer o Luís Macedo há três anos, quando o entrevistei para um docudrama que fiz para a RTP, e a que chamei “A voz e os ouvidos do MFA”, onde revelei um episódio crucial para o sucesso das operações do 25 de Abril: a montagem clandestina de um cabo telefónico entre o Colégio Militar e o que viria a ser o Posto de Comando das operações, na Pontinha, operação planeada pelo então tenente-coronel Garcia dos Santos e levada a cabo nas noites de 23 e 24 de Abril de 74 pelo furriel Carlos Cedoura, com um grupo de guarda-fios, passando os cabos por cima de árvores e telhados para atingir a tempo os objectivos da missão: fornecer escutas e comunicações para as tropas sublevadas, o que garantiu a Otelo e aos outros seis oficias presentes durante a madrugada e o dia 25 de Abril ouvir todas as conversas entre os membros do Regime e as forças policiais e militares até aí às suas ordens, conhecer os seus movimentos e transmitir aos operacionais no terreno – sobretudo a Salgueiro Maia – as indicações necessárias, sem que o “inimigo” suspeitasse que era escutado, para o sucesso da Revolução.

Há dois meses, numa passagem pela sua casa em Santarém, onde o fui encontrar com a mulher e rodeado de filhos e netos, tive ocasião de o entrevistar novamente, mal sabendo que seria a última vez que o iria ver, para uma série documental a que chamei “A Conspiração”, onde tenciono lembrar às gerações mais novas o que foi a saga destes heróicos capitães de Abri, que arriscaram a vida pela Liberdade.

Luís Macedo era, na altura, um dos mais novos entre os militares conspiradores (tinha apenas 27 anos), mas também um dos mais activos, um dos mais determinados, corajosos e inabaláveis na missão que se impuseram: libertar o país da guerra e da ditadura. Algumas reuniões conspirativas fizeram-se em casa dos seus pais, sem estes saberem, e, no final, teve um papel determinante na escolha da Pontinha, onde estava destacado, uma unidade improvável e, por isso mesmo, difícil de identificar pelo Regime, onde Luís Macedo se encarregou de preparar em segredo uma parte do edifício, onde iria instalar o Posto de Comando para o tornar operacional, com telefones, anexos preparados para receber os presos que iriam chegar, e cobrindo com panos escuros as janelas, para que ninguém suspeitasse do que se estava ali a passar.

Foi ele também que lembrou a Otelo a importância da escolha de uma senha e também da ocupação das estações de rádio e de televisão (algum colega lhe terá revelado a importância que, por uma sinistra ironia da História, haviam tido as transmissões no golpe recente de Pinochet no Chile, por este considerado um objectivo mais importante do que a prisão de Allende e dos seus ministros e apoiantes).

Otelo elegeu-o como o seu braço direito nas operações do dia 25 de Abril; e, quando Salgueiro Maia se viu em apuros no Terreiro do Paço, foi ele que, juntamente com Correia de Campos e Jaime Neves (que assim se “limpou” do falhanço das missões que Otelo lhe confiara), foi ajudá-lo a entrar no Ministério do Exército (onde, entretanto, o ministro já tinha conseguido escapar-se por um buraco aberto na parede!); e, de seguida, arrancou para a sede da Legião Portuguesa, onde neutralizou a sinistra milícia fascista, que era um dos suportes mais bem apetrechados do Regime.

No dia em que os noticiários das televisões, em vez de passarem uma hora a mostrar números e a ouvir “especialistas” a comentar os novos gráficos da evolução da pandemia em Portugal e no mundo, começarem a identificar os mortos um a um e dar-lhes um rosto e uma biografia, talvez a reacção preventiva dos cidadãos se interiorize e a estóica aceitação dos sacrifícios também. Por trás de cada número há uma pessoa com uma história interrompida – e que pode ser um de nós.

Até por isso, não deixar que se esqueça a morte prematura e absurda de um dos grandes heróis da nossa História recente é um imperativo para quem o conheceu e lhe ficará eternamente grato, por permitir que os meus filhos e os meus netos tenham nascido, quase todos, e todos eles vivido, em liberdade.

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