Juízas fazem leitura “errada” de artigos científicos e põem em causa fiabilidade de testes à covid-19

Desembargadoras do Tribunal da Relação de Lisboa fazem leitura “errada” de dois artigos científicos e o consenso científico sobre os PCR é “absoluto”, reagem especialistas.

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Os testes PCR identificam o material genético do vírus e são dos mais fidedignos PAULO PIMENTA

Um acórdão assinado por duas juízas do Tribunal da Relação de Lisboa põe em causa a fiabilidade dos testes de PCR, que têm sido usados para identificar a presença do vírus SARS-CoV-2 (responsável pela doença covid-19). As desembargadoras baseiam-se em dois artigos científicos dos quais fazem uma leitura “errada” e “irresponsável”, defendem dois especialistas. Em causa está um caso que envolveu quatro turistas alemães obrigados a confinamento, durante o mês de Agosto, nos Açores.

acórdão da Relação sustenta que não basta um teste PCR para se ter um diagnóstico válido de covid-19. Só um médico pode fazer o diagnóstico desta ou de outra doença. As juízas Margarida Ramos de Almeida e Ana Paramés entendem que “face à actual evidência científica, esse teste mostra-se, só por si, incapaz de determinar, sem margem de dúvida razoável, que tal positividade corresponde, de facto, à infecção de uma pessoa” pelo novo coronavírus.

“A afirmação é falsa”, responde Vasco Barreto, investigador do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que considera uma “irresponsabilidade” a forma como duas magistradas de um tribunal superior põem em causa um instrumento de diagnóstico cientificamente validado. “Os testes de PCR têm uma especificidade e sensibilidade superiores a 95%. Isto é, na esmagadora maioria dos casos detectam o vírus que provoca a covid-19”.

Isso mesmo é indicado num artigo científico que é citado no acórdão, mas que é lido de forma “completamente errada” pelas magistradas, segundo Germano de Sousa, antigo Bastonário da Ordem dos Médicos e dono de uma rede de laboratórios. Em causa está um estudo (Correlation between 3790 qPCR positives samples and positive cell cultures including 1941 SARS-CoV-2 isolates) cujos resultados foram publicados pela Oxford Academic em finais de Setembro.

Os testes de PCR (sigla em inglês para “reacção em cadeia da polimerase”) são o método de diagnóstico mais usado na generalidade dos países  para detectar a presença do SARS-CoV-2 precisamente por serem os mais precisos na identificação do vírus. Esta é uma técnica que amplifica material genético do vírus em ciclos sucessivos – a cada ciclo o material duplica. No estudo citado, foi testada a relação entre a capacidade que as amostras recolhidas tinham de infectar células e o número de ciclos necessários para obter um resultado “positivo”.

“A proporção de amostras que já não eram capazes de infectar as células mantidas em cultura no laboratório aumentava com o aumento do número de ciclos necessários para obter um sinal positivo. Isto sucede porque depois de o nosso corpo controlar a infecção há fragmentos do material genético do vírus que persistem e vão decrescendo ao longo de dias, quando o indivíduo já não representa um perigo para os outros”, explica Vasco Barreto. Conclusões como estas têm ajudado as autoridades de saúde dos diferentes países a reduzir os períodos de quarentena obrigatória para infectados e a prescindir de um teste negativo para dar “alta” a um paciente.

Ora, da leitura do artigo, concluem as juízas que “a probabilidade de a pessoa receber um falso positivo é de 97% ou superior”. Segundo a investigação, isto só acontece se o limiar de ciclos for superior a 35 “como acontece na maioria dos laboratórios do EUA e da Europa”, lê-se no acórdão. Mais uma vez a informação não é precisa. Por exemplo, no Cedoc, onde Vasco Barreto trabalha, para 42% dos testes positivos foram precisos apenas 25 ou menos ciclos e há evidência científica da alta capacidade de propagação do vírus de casos “positivos” a menos de 25 ciclos.

Outra avaliação “errada”

Há um outro artigo científico citado no acórdão da Relação de Lisboa (False-positive COVID-19 results: hidden problems and costs, publicado na revista científica The Lancet) que, para Vasco Barreto, também não aponta no sentido da leitura feita pelas juízas. “Trata-se de um apelo para que haja critérios mais rigorosos na definição de quem são as pessoas a quem devem ser aplicados testes”, precisa.

Ainda assim, as magistradas baseiam-se nessa investigação para concluir que “existindo tantas dúvidas científicas, expressas por peritos na matéria, que são as que aqui importam, quanto à fiabilidade de tais testes”, “nunca seria possível a este tribunal determinar” que o turista alemão era portador do vírus SARS-CoV-2.

Essa avaliação é, uma vez mais “errada” para Germano de Sousa. O turista alemão que suscitou o processo relativamente ao qual o Tribunal da Relação de Lisboa foi chamado a pronunciar-se teve teste positivo ao fim de seis dias em Portugal, depois de ter feito um teste negativo até 72 horas antes de entrar no país. Estava, por isso, “em pleno período de actividade” quando a autoridade de saúde regional ordenou o seu confinamento.

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