“Não disse que me vou candidatar, querida. Eu só disse que não podemos rejeitar a possibilidade”

Em Uma Terra Prometida (Objectiva), Barack Obama conta a sua história de vida e os caminhos que percorreu até chegar à presidência dos EUA. Nesta passagem, um exclusivo do P2, lembra como decidiu candidatar-se à Casa Branca.

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Pete Souza/WHITE HOUSE PRESS OFFICE

Tens de falar com o Kennedy — disse-me. — Ele conhece todos os intervenientes e ele próprio se candidatou. Dar-te-á alguma perspectiva. E, no mínimo, dir-te-á se tenciona apoiar outra pessoa. Herdeiro do nome mais famoso da política americana, Ted Kennedy era nessa altura o que havia em Washington de mais próximo de uma lenda viva. Ao longo de mais de quatro décadas no Senado, ele estivera na vanguarda de cada causa progressista importante, dos direitos civis ao salário mínimo e aos cuidados de saúde.

Com a sua compleição robusta, enorme cabeça e uma juba de cabelo branco, enchia todas as salas por onde passava, e era o senador raro que atraía a atenção sempre que se levantava cauteloso do seu lugar na câmara, procurando os óculos ou as suas notas no bolso do fato e iniciando cada discurso naquele característico tom de barítono de Boston com “Obrigado, Senhora Presidente”. O raciocínio desenrolar-se-ia, com a voz a aumentar de volume, o rosto a enrubescer, num crescendo semelhante ao de um pregador emotivo, por mais mundano que fosse o assunto em discussão. Uma vez findo o discurso, descia a cortina e ele voltava a ser o velho Teddy, amável, a percorrer a coxia para consultar a lista de presenças, ou sentado junto de um colega, com a mão pousada no ombro ou no braço dele, a sussurrar-lhe ao ouvido ou irrompendo em fortes gargalhadas, daquelas que faziam com que não nos importássemos com o facto de ele estar provavelmente a manipular-nos para alguma votação em que pudesse precisar de nós.

O gabinete de Teddy, no terceiro andar do edifício de escritórios do Senado Russell, era um reflexo do homem: encantador e repleto de história, com as paredes atravancadas de fotografias de Camelot, modelos de veleiros e quadros de Cape Cod. Um quadro em particular reteve a minha atenção, mostrando rochedos negros e irregulares a traçar uma curva sobre um mar encrespado, de cristas brancas. — Precisei de muito tempo para conseguir que aquele me saísse bem — disse Teddy, abeirando-se de mim. — Três ou quatro tentativas. — Valeu a pena — retorqui. Sentámo-nos no espaço reservado dele, com as cortinas puxadas e uma luz suave, e ele começou a contar histórias sobre vela, os seus filhos e diversos combates que travara no Senado. Histórias brejeiras, histórias divertidas. De vez em quando, extraviava-se por alguma corrente alheia antes de retomar o rumo original, por vezes exprimindo apenas um fragmento de uma lembrança, sabendo ambos que aquilo era uma encenação… que estávamos apenas a circundar o verdadeiro motivo da minha visita. — Portanto… — disse por fim —, ouvi dizer que se fala de você se candidatar à presidência. Disse-lhe que era improvável, mas que ainda assim queria o conselho dele. — Ah, sim. Bem, quem foi que disse que há uma centena de senadores que olham para o espelho e vêem um presidente? — Teddy riu-se consigo mesmo. — Perguntam: “Terei o que é preciso?” O Jack, o Bobby, eu também, há muito tempo. Não correu como planeado, mas parece-me que as coisas acabaram por resultar, à sua própria maneira…

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Barack Obama e Ted Kennedy durante um comício a 28 de Janeiro de 2008, em Washington D.C. Chip Somodevilla/Getty Images

Silenciou-se, perdido nos pensamentos. Ao observá-lo, interroguei-me como avaliaria a sua própria vida, e as vidas dos seus irmãos, o preço terrível que cada um deles pagara, no encalço de um sonho. Depois, de forma igualmente repentina, estava de novo presente, com os olhos de um azul profundo fixados nos meus, atento ao momento. — Eu não me vou envolver muito cedo — disse Teddy. — São demasiados amigos. Mas posso dizer-lhe isto, Barack. O poder de inspirar é raro. Momentos como este são raros. Pode pensar que talvez não esteja pronto, que o fará numa altura mais conveniente. Só que não é você quem escolhe o momento. O momento escolhe-o a si. Ou agarra a que poderá ser a única oportunidade que tem, ou decide que está disposto a viver sabendo que a oportunidade lhe passou ao lado.

Dificilmente Michelle vivia alheada do que estava a acontecer. A princípio, limitou-se a ignorar a agitação. Deixou de ver programas noticiosos políticos e repelia todas as perguntas demasiado ansiosas de amigos e colegas de trabalho sobre se eu planeava candidatar-me. Quando, certa noite em casa, referi a conversa que tivera com Harry, ela só encolheu os ombros e eu não insisti no tema. Todavia, com a passagem do Verão, a conversa começou a infiltrar-se pelas fendas e rachas da nossa vida doméstica. As nossas noites e fins-de-semana pareciam normais enquanto Malia e Sasha andassem por ali, mas eu sentia a tensão sempre que estava sozinho com Michelle.

Finalmente, certa noite depois de as miúdas estarem a dormir, fui para a salinha onde ela estava a ver televisão e desliguei o som. — Sabes que não planeei nada disto — disse eu, sentando-me ao lado dela no sofá. Michelle ficou a olhar fixamente para o ecrã silencioso. — Eu sei — disse ela. — Percebo que mal tivemos tempo para recuperar o fôlego. E que, até há poucos meses, a ideia de eu me candidatar pareceria absurda. — Pois. — Mas, tendo em conta tudo o que aconteceu, sinto que temos de considerar seriamente a ideia. Pedi à equipa para preparar uma apresentação. Como seria a agenda da campanha. Se podíamos ganhar. Como isso afectaria a família. Ou seja, se alguma vez nós avançarmos para isto… Michelle interrompeu-me, a voz embargada de emoção. — Disseste nós? — perguntou. — Queres dizer tu, Barack. Nós, não. Isto é uma coisa tua. Apoiei-te sempre porque acredito em ti, apesar de detestar política. E detesto a maneira como expõe a nossa família. Tu sabes isso. E agora temos finalmente alguma estabilidade… apesar de ainda não ser normal, não ser a forma de vivermos que eu escolheria… e agora dizes-me que te vais candidatar a presidente? Peguei-lhe na mão. — Não disse que me vou candidatar, querida. Eu só disse que não podemos rejeitar a possibilidade. Mas só posso pensar nela se tu aderires. Calei-me por um momento, vendo que a ira dela não estava a amainar. — Se achas que não devemos, então não o faremos, é tão simples quanto isso. Cabe-te a palavra final. Michelle ergueu as sobrancelhas, como se para sugerir que não acreditava em mim. — Se isso for realmente verdade, então a resposta é não — declarou. — Não quero que te candidates a presidente, pelo menos não agora.

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Barack Obama, Michelle e as duas filhas em campanha para as presidenciais em Des Moines, Iowa, a 16 de Agosto de 2007 Joe Sohm/Visions of America/Universal Images Group via Getty Images

Lançou-me um olhar duro e levantou-se do sofá. — Meu Deus, Barack! Quando é que vais sentir que já chega? Antes que eu pudesse responder, ela foi para o nosso quarto e fechou a porta. Como poderia eu censurá-la por se sentir daquela maneira? Ao aventar sequer a possibilidade de uma candidatura, ao envolver os meus colaboradores antes de lhe pedir a bênção, eu pusera-a numa posição impossível. Havia já anos que eu pedia a Michelle fortaleza de espírito e indulgência, no que tocava às minhas iniciativas políticas, e ela cedera… com relutância, mas com amor. E depois eu voltava sempre de novo, a pedir mais. Por que razão a faria eu passar por isto? Seria somente vaidade, ou talvez algo mais sombrio: uma fome primária, uma ambição cega, dissimuladas pelas palavras vagas do serviço público? Ou estaria eu ainda a tentar provar o meu valor a um pai que me abandonara, mostrar-me à altura das expectativas visionárias da minha mãe para com o seu próprio filho e resolver qualquer insegurança que restasse de ter nascido miscigenado?

“É como se tivesses um buraco para encher”, dissera-me Michelle nos primeiros tempos do nosso casamento, depois de um período em que me vira trabalhar quase até ao esgotamento. “É por isso que não consegues abrandar.” Na verdade, eu pensava ter resolvido esses problemas havia muito, encontrando confirmação no meu trabalho, segurança e amor na minha família. Porém, questionava-me agora se conseguiria alguma vez escapar ao que quer que fosse que havia em mim que precisava de ser curado, aquilo que me fazia tentar sempre chegar mais longe. Talvez seja impossível deslindar as próprias motivações. Recordei-me de um sermão de Martin Luther King, Jr., intitulado O Principal Instinto do Tambor. Nesse sermão, ele fala de como todos nós, bem lá no fundo, queremos ser os primeiros, ser celebrados pela nossa grandeza; todos queremos “encabeçar o desfile”. Prossegue fazendo notar que tais impulsos egoístas podem ser reconciliados fazendo coincidir essa demanda de grandeza com objectivos mais abnegados. Podemos esforçar-nos para sermos os primeiros no serviço, primeiros no amor. A mim, parecia-me uma maneira satisfatória de encontrar a quadratura do círculo no que tocava aos instintos mais básicos e mais elevados de cada um. Só que agora eu confrontava-me também com o facto óbvio de que os sacrifícios nunca eram só meus. A família fora arrastada para a viagem, para a linha de fogo. A causa do Dr. King e os seus dons poderiam ter justificado um tal sacrifício. Mas poderiam os meus?

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Michelle e Sasha durante um comício de Barack Obama em Ames, Iowa, a 11 de Fevereiro de 2007 Scott Olson/Getty Images

Não sabia. Fosse qual fosse a natureza da minha fé, não podia refugiar-me na noção de um chamamento de Deus para que eu me candidatasse a presidente. Não podia fingir estar apenas a responder a alguma atracção invisível do Universo. Não podia afirmar que era indispensável à causa da liberdade e da justiça, ou negar responsabilidade no fardo que estaria a impor à minha família. As circunstâncias podem ter aberto a porta a uma corrida presidencial, mas nada durante esses meses me impedira de a fechar. Eu podia ainda fechar facilmente a porta. E o facto de não o ter feito, de, em vez disso, ter consentido que a porta se escancarasse, era tudo o que Michelle precisava de saber. Se um dos requisitos para a candidatura ao cargo mais poderoso do mundo era a megalomania, parecia que eu estava a passar no teste.

Tais pensamentos tingiam o meu estado de espírito quando parti, em Agosto, para um circuito de dezassete dias por África. Na África do Sul, apanhei um barco para Robben Island e estive na cela minúscula onde Nelson Mandela passara a maior parte dos seus vinte e sete anos na prisão, conservando a sua fé de que a mudança aconteceria. Encontrei-me com membros do Supremo Tribunal sul-africano, falei com médicos numa clínica de VIH/sida e passei tempo com o bispo Desmond Tutu, cujo espírito jubiloso eu ficara a conhecer durante as suas visitas a Washington. — É então verdade, Barack — disse ele com um sorriso endiabrado —, que vai ser o nosso primeiro presidente africano dos Estados Unidos? Ah, isso deixar-nos-ia a todos muito orgulhosos! Da África do Sul, voei para Nairobi, onde Michelle e as meninas — acompanhadas pela nossa amiga Anita Blanchard e pelos filhos dela — foram ter comigo. Com auxílio de uma cobertura intensiva da imprensa local, a reacção queniana à nossa presença foi insuperável. Uma visita a Quibera, uma das maiores favelas de África, atraiu milhares de pessoas que se comprimiram nos caminhos sinuosos de lama vermelha, a entoar o meu nome. Quando viajámos para a província de Nyanza, a terra ancestral do meu pai na região ocidental do país, havia pessoas a ladear a estrada ao longo de quilómetros e, quando Michelle e eu parámos numa clínica móvel para fazer em público um teste de VIH, como meio de demonstrar que era seguro, compareceu uma multidão de milhares, submergindo o nosso veículo e pregando um verdadeiro susto à equipa de segurança diplomática. Só quando fomos fazer um safari, estacionados entre leões e gnus, escapámos ao tumulto. — Juro que estas pessoas pensam que tu já és presidente, Barack — gracejou Anita uma noite. — Não te esqueças de me reservar um lugar no Air Force One, está bem? Nem Michelle nem eu rimos.

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Barack Obama e a vencedora do Prémio Nobel da Paz Wangari Maathai no Uhuru Park Freedom Corner, em Nairobi, Quénia, a 26 de Agosto de 2006 Fredrick Onyango/Getty Images

A família seguiu de regresso a Chicago e eu prossegui, viajando até à fronteira com a Somália para ser informado sobre a cooperação entre os Estados Unidos e o Quénia contra o grupo terrorista Al-Shabaab; apanhei depois um helicóptero do Jibuti para a Etiópia, onde militares norte-americanos prestavam apoio à assistência alimentar; e, por fim, voei para o Chade, para visitar refugiados de Darfur. Em cada paragem, via homens e mulheres envolvidos num trabalho heróico, em circunstâncias impossíveis. Em cada paragem, era-me dito o quanto mais a América podia estar a fazer para ajudar a mitigar o sofrimento. E, em cada paragem, era-me perguntado se me candidataria à presidência.

Passados apenas alguns dias do meu regresso aos Estados Unidos, voei para o Iowa, para proferir um discurso de abertura no churrasco do senador Tom Harkin, um ritual anual que tinha uma importância acrescida no período de lançamento das eleições presidenciais, visto que o Iowa era sempre o primeiro Estado a votar no processo das primárias. Eu aceitara o convite meses antes — Tom pedira-me que falasse precisamente para evitar ter de escolher entre todos os aspirantes presidenciais que cobiçavam a oportunidade —, mas agora a minha comparência só alimentava a especulação. Quando estávamos a abandonar as instalações, depois do meu discurso, fui chamado à parte por Steve Hildebrand, ex-director político da Comissão de Campanha Senatorial Democrata e antiga autoridade no Iowa, que fora recrutado por Pete para me servir de guia. — Foi a recepção mais calorosa que alguma vez aqui vi — disse-me ele. — Você pode ganhar o Iowa, Barack. Sinto-o. E, se ganhar o Iowa, pode conseguir a nomeação.

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Barack Obama em campanha pelo senador Tom Harkin, em Indianola, Iowa, a 17 de Setembro de 2006 Scott Morgan/Getty Images

Por vezes, parecia que fora apanhado numa maré, arrastado pela corrente das expectativas de outras pessoas antes de ter definido claramente as minhas. A temperatura elevou-se ainda mais quando, um mês depois, somente algumas semanas antes das eleições intercalares, foi publicado o meu segundo livro. Trabalhara nele o ano todo, nos serões no meu apartamento em Washington e aos fins-de-semana, depois de Michelle e as nossas filhas terem ido dormir; até mesmo no Jibuti, onde me debatera várias horas a tentar enviar por fax provas corrigidas para o meu editor. Eu nunca tencionara que o livro servisse de manifesto de campanha; queria apenas apresentar as minhas ideias a respeito do estado corrente da política americana de uma maneira interessante e vender exemplares suficientes para justificar o avanço avultado que recebera a título de direitos de autor. Contudo, não foi assim que foi recebido, tanto pela imprensa política como pelo público. Promovê-lo implicava que eu estivesse quase continuamente na televisão e na rádio, e isso, a par das minhas muito visíveis digressões em campanha pelos candidatos ao Congresso, fazia com que eu próprio parecesse cada vez mais um candidato.

Numa viagem de carro de Filadélfia para Washington, onde tinha agendado participar no programa Meet the Press na manhã seguinte, Gibbs e Axe, juntamente com o sócio de Axe, David Plouffe, perguntaram-me o que tencionava eu dizer quando, inevitavelmente, Tim Russert apertasse comigo a respeito dos meus planos. — Ele vai voltar a passar a velha cassete, aquela em que afirmas inequivocamente que não te candidatarás a presidente em 2008 — explicou Axe. Escutei durante alguns minutos enquanto os três discutiam diversas maneiras de fugir à questão, até que os interrompi. — Porque é que não digo simplesmente a verdade? Não posso dizer só que não tinha intenção de me candidatar há dois anos, mas as circunstâncias mudaram, tal como o meu pensamento, e que tenciono reflectir seriamente sobre o assunto depois de terminadas as intercalares? Agradou-lhes a ideia, admitindo que se via algo da estranheza da política no facto de uma resposta tão directa ser considerada original.

Gibbs também me aconselhou a que alertasse Michelle, prevendo que uma indicação directa de que eu poderia candidatar-me faria com que o frenesim dos meios de comunicação se intensificasse imediatamente. Foi exactamente o que aconteceu. O meu reconhecimento no Meet the Press fez manchetes e as notícias da noite. Na Internet, foi criada uma petição “Mobilizem Obama”, que angariou milhares de assinaturas. Colunistas de audiência nacional, incluindo vários conservadores, escreveram textos de opinião a exortar-me a candidatar-me, e a Time publicou uma história que fez capa intitulada Porque Podia Barack Obama ser o Próximo Presidente. Contudo, nem toda a gente parecia rendida às minhas perspectivas. Gibbs relatou que, quando parara num quiosque na Michigan Avenue para comprar um exemplar da Time, o vendedor indo-americano olhou para a minha fotografia e teve uma reacção em três palavras: “Foooda-se para isto.” Rimo-nos um bom bocado com o caso. E à medida que aumentava a especulação sobre a minha candidatura, Gibbs e eu repetíamos a frase como se fosse um feitiço que ajudasse a conservar a nossa ligação à realidade e rechaçasse a sensação crescente de que os acontecimentos se processavam à revelia do nosso controlo. A multidão na minha apresentação final antes das eleições intercalares, um comício de fim de dia em Iowa City a apoiar o candidato democrata a governador, estava particularmente rouco. De pé no palco e a olhar para os milhares de pessoas ali reunidas, a exalação delas a ascender como nevoeiro entre a luz dos projectores, com os rostos virados para cima de expectativa, as ovações a abafar a minha voz alterada, senti como se estivesse a assistir a uma cena num filme, não sendo eu a figura no palco.

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Nessa noite voltei tarde. A casa estava às escuras e Michelle já dormia. Depois de tomar um duche e passar em revista uma pilha de correio, meti-me debaixo das cobertas e comecei a dormitar. Nesse espaço limiar entre a vigília e o sono, imaginei-me a avançar para um portal qualquer, um lugar luminoso e frio, desabitado e separado do mundo. E, por trás de mim, ouvi uma voz aguda e nítida vinda do escuro, como se alguém estivesse mesmo junto a mim a repetir a mesma palavra múltiplas vezes: Não. Não. Não. Saí da cama de um salto, com o coração aos pulos, e desci as escadas para me servir de uma bebida. Fiquei sentado sozinho, às escuras, a bebericar vodca, com os nervos em dissonância e o cérebro em súbita sobrecarga. O meu maior medo, afinal, não era já da irrelevância, ou de ficar encalhado no Senado, ou até de perder a disputa presidencial. O medo vinha da tomada de consciência de que podia ganhar.

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