A lenta agonia da classe média
Perante a dissolução da classe média, as pessoas comuns desejam aprendizes de ditadores, ou utilizam-nos para mostrarem a sua insatisfação perante a ausência de respostas políticas?
Na ressaca das eleições americanas e do eleitorado de Trump volta-se ao assunto, mas podia ser Bolsonaro, o “Brexit”, os Coletes Amarelos e tantos outros acontecimentos nos últimos anos, como sucedeu há semanas nos Açores, com aqueles que votaram Chega. Quem são exactamente? O seu apoio a figuras populistas é convicto? O que as move? Querem mesmo lideranças autoritárias e acreditam nelas como operadores de mudança, ou o seu gesto é de protesto, quando não de ressentimento, perante um espaço político que sentem já não os representar? Há muitas teorias.
Uma delas tem vindo a ser desenvolvida pelo geógrafo francês Christophe Guilluy, que tem abordado as fracturas sociais em diversas obras, como No Society (2018), onde analisa a origem e efeitos daquilo que descreve como o fim das classes médias ocidentais, a coluna vertebral das nossas sociedades. O seu ponto é que o modelo neoliberal criou muita riqueza, mas esgotou-se ao não gerar sociedade. Permitiu a integração de parte das classes altas, os que aproveitaram os modelos dominantes e as lógicas do mercado liberal, mas foi enfraquecendo algumas camadas das classes médias. Inicialmente, trabalhadores, agricultores, empregados e pequenos empresários e depois outras áreas de actividade onde a proletarização, a precariedade e a instabilidade se foram tornando o padrão. Uns de esquerda, outros de direita. Um bloco com origens muito diversas.
As categorias mais modestas da classe média entraram em perda. Sentiram-se negligenciadas económica e geograficamente (remetidos para periferias, cidades-médias ou áreas rurais) e culturalmente confinados à invisibilidade. O que existe hoje é uma amálgama de pessoas comuns — entre classes populares e estratos da antiga classe média — que não têm sido atendidas no seu descontentamento, sintoma de esgotamento de um arquétipo socioeconómico que, paradoxalmente, também deixou de servir parte dos que habitam nas grandes cidades, pela gentrificação, homogeneização e insustentabilidade ecológica e social.
Os partidos clássicos não se adaptaram a esta nova situação sociocultural, funcionando a lenta agonia da classe média como estertor do equilíbrio das democracias, com cada vez mais gente sentindo ausência de representação política. Em potência, são a maioria. Pessoas comuns que não decidiram ser contra a globalização ou modelos neoliberais. Simplesmente constatam que foram excluídas. Deixaram de ouvir as elites e todos os pretextos servem para mostrar insatisfação, cansadas e sem vias de ascensão. Existe um descompasso entre a oferta política sem respostas e as expectativas. Os populismos de direita infiltram-se por essa brecha. Adaptam-se à demanda, mesmo se o que têm para oferecer é uma mão cheia de nada.
Mas a esquerda também não tem conseguido lidar com a situação. Perdeu o contacto com fatias descrentes da população. Reage no sentido de preservar o mínimo (emprego, estado social, educação, saúde), mas não tem conseguido propor ideias alternativas de futuro consistentes e mobilizadoras. Existe um vazio. A partir dele as massas populares, por vezes, parecem querer um qualquer aprendiz de ditador. Mas será que o desejam realmente? Ou utilizam-no para demonstrar que existem, mostrando o seu descontentamento? Não estarão elas à espera de outro tipo de respostas políticas? Guilluy é esperançoso. Sustém que as pessoas comuns descontentes vão acabar por fazer com que a sociedade recupere um pouco de coerência, até porque as classes dominantes têm sido obrigadas a despertar para os desequilíbrios. Não estou tão optimista.
Ainda esta semana em Portugal, à volta do Chega, se vislumbrou isso. Fala-se de efeitos. Politiquice. Luta de galos. Desvalorização ou negação da realidade. Mas total ausência de preocupação com as pessoas comuns.