Infografia
O caso da fábrica de calçado: como se desenrolou um dos primeiros surtos de covid-19 em Portugal?
O surto numa fábrica de calçado em Felgueiras, em Março, deu origem a 33 casos de covid-19 e obrigou mais 700 pessoas a estar em isolamento. Tudo começou com um caso importado de Itália. Com a ajuda das autoridades de saúde, o PÚBLICO analisou este e outros dois surtos ao detalhe.
No fim de Fevereiro, um homem regressou a Portugal vindo de Itália. Este cidadão de 50 anos tinha participado numa feira de calçado em Milão, que aconteceu pela altura do Carnaval.
Alguns dias depois de regressar a Portugal, volta às suas funções na fábrica de calçado e curtumes onde trabalha, no concelho de Felgueiras, na região Norte. Nesta altura, o homem já apresenta sintomas sugestivos da doença, mas não os associa de imediato à covid-19.
No interior, esta fábrica parece-se com qualquer outra empresa deste ramo: há uma nave comum(um grande espaço aberto) no rés-do-chão que é dividida em três zonas de fabrico (costura,montagem eacabamentos). Existe ainda umarmazém, umasala de amostras e ascasas de banho.
O primeiro caso (a que vamos chamar paciente zero ) trabalha numa área específica da fábrica: a sala de amostras.
Nesta sala de amostrastrabalham diariamente dois funcionários, o caso zero e outro trabalhador
(que vai acabar por também ser infectado com o novo coronavírus).
Estes dois homens são responsáveis por fazer as amostras de calçado e para isso têm de circular por toda a empresa. O primeiro caso teve, assim, contacto com quase todos os 70 trabalhadores da empresa antes de saber que estava infectado. As autoridades de saúde admitem que a partilha de máquinas, objectos e ferramentas pode ter sido um meio de propagação do vírus.
O primeiro caso continuou a trabalhar durante alguns dias na mesma situação (com alguns sintomas, mas sem os associar à covid-19). Nessa mesma semana, participou num almoço de família com outras 29 pessoas
.
Vários dos familiares presentes neste almoço são funcionários da fábrica de calçado. Em 30 pessoas, 13 ficaram infectadas e destas 13, seis trabalhavam na fábrica (e sete
não). As autoridades de saúde acreditam que não foi o paciente zero
a contagiar todos os restantes casos. Como foram diagnosticados dias depois, poderão ter sido infectados pelo pai, pela mãe ou pelo irmão do paciente zero, três pessoas que também ficaram doentes.
Como o vírus se pode ter espalhado?
De acordo com as autoridades de saúde, existe um factor muito típico nas empresas desta zona do país: é comum que a empresa providencie transporte aos trabalhadores (de e para a fábrica). No caso desta fábrica de Felgueiras, existem carrinhas que transportam vários trabalhadores. Este é um factor importante para as autoridades de saúde, que admitem que os veículos podem ter sido outro dos locais onde houve transmissões.
No espaço da nave existe apenas ventilação natural. As autoridades admitem que pode existir ventilação artificial noutras zonas da fábrica, mas acreditam que tal facto não terá tido influência na transmissão, que deverá ter acontecido maioritariamente através do contacto directo
Os postos de trabalho na nave(e os próprios trabalhadores) não estão muito afastados uns dos outros porque algum do material de trabalho (inclusive os sapatos) passa de uma secção para a outra – da costura para a montagem, da montagem para o acabamento.
No andar da nave, as casas de banho são o único espaço comum, e não há cruzamento de pessoas em elevadores ou escadas.
Este foi um dos primeiros surtos a ser detectado (e investigado ao detalhe pela autoridade de saúde) em Portugal. Não estavam ainda em curso quaisquer mecanismos para evitar a transmissão do vírus, como a utilização de máscara, o distanciamento entre trabalhadores, o encerramento de espaços, os cuidados de higiene que agora são regra ou o isolamento de casos positivos porque o vírus ainda não tinha sido detectado em território nacional.
No total, na fábrica, registaram-se 11 casos positivos ( +
) : além dos dois casos na sala de amostras, foram registados três na zona da costura, três na montagem, um no acabamento. Foi ainda detectado um caso num trabalhador que labora na zona de armazém e que não tem contacto com os trabalhadores da nave e um outro caso num funcionário cuja função é desconhecida.
O surto que foi descrito ao PÚBLICO pela equipa de Saúde Pública da Administração Regional de Saúde (ARS) da região Norte tem várias cadeias de transmissão e está ligado a dois contextos: o laboral e o familiar. Nesta região do país existem muitos negócios familiares, daí que grande parte das pessoas infectadas no almoço sejam também trabalhadores da fábrica.
“Apesar de termos a certeza de que ocorreu transmissão no local de trabalho, grande parte também pode ter ocorrido fora, explica Ana Mendes, responsável pelo gabinete de crise de saúde pública da ARS Norte.
Não é possível estabelecer de forma clara a ligação entre todos os casos, mas, segundo a equipa da ARS Norte, não foi o primeiro caso que deu origem aos outros 32. “Uns foram transmitindo [o vírus] aos outros”, diz Ana Rita Gomes, delegada de Saúde do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Tâmega III – Vale do Sousa Norte que, tal com Ana Mendes, foi uma das primeiras profissionais a lidar com casos suspeitos de covid-19 em Portugal.
Quando este surto teve início (foi um dos primeiros a ser identificado em território nacional) ainda estávamos em época gripal e a equipa de saúde pública admite que o quadro ligeiro de sintomas pode ter sido desvalorizado durante algum tempo. “O doente com sintomatologia estava a trabalhar normalmente porque associava os sintomas a outra coisa, uma constipação. Se fosse agora as pessoas estariam muito mais alerta”, refere Ana Rita. Além disso, falava-se e pensava-se no novo coronavírus como algo “fora de Portugal”.
“A doença espalhou-se com a convivência normal das pessoas, a forma como trabalham muito proximamente, o convívio familiar. Na região em questão, as famílias juntam-se muito e há muitas festas, daí que tenham existido várias cadeias de transmissão, uma festa de anos, uma vizinha que vai visitar uma amiga. Era a vida normal antes de tudo acontecer e o contacto afectivo muito próximo também contribuiu. A nível de empresa, os trabalhos decorriam dentro do normal para uma fábrica de calçado, ninguém laborava com a máscara, não existiam os cuidados de higiene e de distanciamento. Na altura, não se falava de nada disso”, explica a delegada de saúde.
Neste surto, que teve origem num caso importado , 33 pessoas ficam infectadas . Foram isolados os contactos próximos de todos os casos positivos – mais de 700 pessoas
Na fábrica onde o paciente zero trabalha, e que tem
cerca de 70 funcionários, 11 (
) pessoas ficaram doentes.
No almoço de família estiveram 30 convidados, incluindo o paciente zero. Testaram positivo 13 ( ) pessoas e seis destas são trabalhadores da fábrica.
Foi este surto que levou as autoridades a tomarem as primeiras medidas mais musculadas em termos de saúde pública, principalmente nos concelhos de Lousada e Felgueiras. As escolas foram encerradas, as missas e visitas aos lares suspensas. Alguns dos casos próximos também frequentavam o campus em Braga da Universidade do Minho, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e a Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, o que também levou aos seus encerramentos parciais ou totais, logo a 8 de Março.
Se este surto fosse detectado agora, o que seria diferente? Os trabalhadores usariam máscara ou outras protecções, estariam a uma distância superior a 1,5 metros e teriam cuidados de higiene reforçados. Mas, neste caso em particular e tendo em conta a altura em que tudo aconteceu, o número de testes realizados pode também ter contribuído para a dimensão do surto. “Em termos de testes e da identificação de outro tipo de sintomatologia que pudesse estar relacionada com doença não tínhamos a capacidade que temos agora. Se soubéssemos aquilo que sabemos agora se calhar tínhamos identificado muitos mais casos”, refere Ana Rita Gomes.
FICHA TÉCNICA
Infografia: Francisco Lopes, Gabriela Gómez e José Alves Texto: Sofia Neves Desenvolvimento web: Francisco Lopes e José Alves