Kamala Harris vai fazer história, sem grande alarido

A senadora é a primeira mulher, a primeira mulher negra, a primeira pessoa de origem indiana, a primeira aluna de uma universidade negra a ser eleita para o segundo cargo mais importante dos Estados Unidos.

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A eleição de Kamala Harris como vice-presidente torna esta eleição histórica LARRY W. SMITH/EPA

Na reacção à declaração da vitória do Presidente eleito, Kamala Harris afirmou: esta “vai muito além de Joe Biden ou de mim”. No entanto, muitos apontaram o que significa a declaração de vitória dos democratas: é a primeira vez que uma mulher, uma mulher negra, uma pessoa de origem indiana, uma aluna de uma universidade negra chega tão longe na política americana.

Talvez seja fácil perder de vista que Harris é apenas a segunda pessoa negra num “ticket” de um dos dois grandes partidos americanos — a primeira foi Barack Obama, eleito Presidente em 2008.

Harris é a terceira mulher candidata a “vice” num desses partidos, e na verdade, as anteriores não tiveram grandes hipóteses de vencer: a primeira, a congressista democrata Geraldine Ferraro, concorreu como “número dois” de Walter Mondale em 1984, quando Mondale desafiou o então Presidente Ronald Reagan. Em 2008, a então governadora do Alasca, Sarah Palin, foi escolhida para contraponto à do primeiro candidato negro, Barack Obama, contra quem o senador republicano John McCain nunca teve muitas hipóteses.

Desta vez, a escolha foi feita por um candidato à frente nas sondagens e com hipótese de vencer, numa lógica de dar vitalidade e energia a uma campanha de um político já há anos na ribalta. Joe Biden tinha, também, uma dívida para com os eleitores negros, já que estes foram decisivos nas primárias democratas contra Bernie Sanders.

Harris surge quando um Presidente usava termos depreciativos para com as mulheres, é uma mulher negra nos tempos de Black Lives Matter.

“Num certo sentido, é a primeira vez na história dos Estados Unidos que a eleição do vice-presidente é mais histórica do que a do Presidente”, disse ao Los Angeles Times Joel Goldstein, da Universidade de St. Louis. “Quebra uma barreira.”

O jornal comenta que, com a Barack Obama na presidência, os Estados Unidos já re-imaginaram os seus líderes. “Mas o que se seguiu — a incapacidade de Hillary Clinton quebrar a barreira do género, as relações raciais tensas da era Trump — tornou a perspectiva da eleição de uma mulher, e ainda menos de uma mulher de cor, numa missão muito difícil.”

Impacto sísmico

“Harris vai ser um grande exemplo a seguir para mulheres e raparigas em todo o mundo”, previu a senadora Kirsten Gillibrand, de Nova Iorque, que centrou a sua própria campanha na importância de representatividade de mulheres, antecipando a possibilidade de Harris ser eleita, ao Washington Post. “Vai ter um impacto sísmico na trajectória da história, assim como nas aspirações de milhões de pessoas.”

A sobrinha de Harris, Meena, muito activa no Twitter, publicou, no Halloween, imagens de uma série de crianças, algumas mínimas, vestidas como Harrisblazer e sapatilhas. “É importante a representação”, comentava.

“O impacto político imediato da escolha de Harris pode ser limitado”, escrevia o New York Times na altura em que Biden anunciou a sua candidata a “vice”, falando nas “forças de escala extraordinária incluindo uma pandemia que afectou milhões de vidas”.

Ainda assim, com a idade do candidato (Biden tem 77 anos, terá 78 quando tomar posse, será o Presidente mais velho de sempre) e o facto de poucos esperarem que se recandidate, era claro que a decisão sobre quem seria a “vice” tivesse “implicações com um peso pouco habitual para o Partido Democrata e para a política nacional em geral”.​

Glynda Carr, presidente do grupo Higher Heights for America, que apoia mulheres negras na política, comentou ao LA Times: “A minha esperança é que vamos ver literalmente um caminho aberto para que uma mulher negra seja a primeira Presidente mulher de sempre na História do nosso país.”

“Sou o que sou”

Nascida em Oakland, Califórnia, filha de dois académicos imigrantes, a mãe de origem indiana e o pai jamaicano, Harris escolheu estudar numa universidade historicamente negra, Howard, em Washington, D.C., por querer estar num local que não fosse maioritariamente branco, algo diferente da escola em Berkeley ou do liceu em Montreal, no Canadá, onde viveu também.

Em Howard, “jóia da coroa das universidades negras”, teve finalmente a sensação “de compreender que há um mundo inteiro de pessoas” que eram como ela. “Que não somos só alguns que se podem encontrar”, sublinhou.

A sua carreira foi feita na área da justiça criminal, onde chegou a procuradora de São Francisco em 2004, e procuradora-geral da Califórnia em 2011 (em ambos os cargos, a primeira mulher e a primeira negra). Em 2017, concorreu para o Senado, e ganhou: tornou-se a segunda mulher negra a ser eleita senadora.

A sua popularidade entre eleitores negros não era a maior, também pelo papel de “top cop" enquanto procuradora. O Washington Post trazia para esta discussão a escolha da sua alma mater: “Para aqueles que vêem o seu marido branco, questionam o seu tempo como procuradora-geral na Califórnia, num sistema que castiga desproporcionalmente pessoas de cor, e questionam a sua empatia em relação a homens negros, Howard é a sua reposta.”​

“Sou o que sou”, disse um dia Harris ao Washington Post, respondendo às perguntas sobre a sua identidade — é mais negra que indiana? — e mostrando dificuldade nesse “processo de uma pessoa ter de se definir de modo a encaixar numa das caixas que outros criaram para nós”. 

Ao apresentar-se aos americanos, Harris traz ainda mais novidades ao exclusivo grupo composto pelo Presidente, "vice”, e os seus cônjuges. É casada com o advogado Doug Emhoff, que além de ser o primeiro “vice-marido”, será o primeiro judeu (de qualquer género) neste quarteto, algo que foi apontado por exemplo pela revista judaica americana Forward: “Kalama Harris e Douglas Emhoff fizeram história para as famílias inter-religiosas. Todos os judeus deviam comemorar isso.” 

Harris usa com orgulho a alcunha “momala” (a fusão de mom e Kamala), como lhe chamam as duas enteadas, as filhas, adultas, do primeiro casamento de Emhoff. Descreve o seu clã como “uma família moderna”. E ver uma vice-presidente com uma família moderna será também uma novidade nos EUA.

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