Aumento da mortalidade nos primeiros meses da pandemia? As ondas de calor não explicam tudo
Grupo de investigação em Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa admite efeito das ondas de calor, mas cruza-o com diminuição de prestação de cuidados de saúde.
O grupo de investigação “Barómetro covid-19”, da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, julga que as ondas de calor podem explicar uma parte do aumento de mortalidade registada nos primeiros meses da pandemia em Portugal, mas não toda.
Entre o dia 16 de Março de 2020, data do primeiro óbito por covid-19, e 30 de Setembro, registaram-se mais 7529 óbitos do que o esperando, tendo em conta a base na mortalidade média dos últimos cinco anos. Este excesso de mortalidade, de 12%, afectou sobretudo pessoas com mais de 85 anos (+18%).
Tirando as mortes por causa externa ou sob investigação, ficam 6072 óbitos por causas naturais. O grupo – composto por André Vieira, Vasco Ricoca Peixoto, Pedro Aguiar, Giorgio Zampaglione Paulo Sousa e Alexandre Abrantes – classifica como colaterais 68% dessas mortes.
Num artigo publicado no Verão, este grupo de investigação tinha admitido a possibilidade de “alguns óbitos ocorridos em casa ou em instituições de cuidados continuados poderem não ter tido confirmação laboratorial de covid-19”. Agora, descarta a hipótese de subnotificação de covid-19. Afinal, “a política de testagem é extremamente abrangente e inclui até testes em cadáveres”.
No novo artigo, os especialistas lembram que “as autoridades tentaram atribuir o excesso de mortalidade à ocorrência de ondas de calor e epidemias da gripe”. Essa hipótese parece-lhes que “pode ser considerada para determinados segmentos, mas não em todo o segmento”.
Atendendo à definição da Organização Meteorológica Mundial, “ocorre uma onda de calor quando, pelo menos seis dias consecutivos, a temperatura máxima diária é superior em 5ºC ao valor médio diário no período de referência”. Pode dizer-se que isso aconteceu entre 24 a 29 de Maio e entre 15 a 17 de Julho. Só que na primeira vez a temperatura não ultrapassou 32ºC e na segunda os 36ºC, o que, dizem os investigadores, “dificilmente explicará” uma mortalidade desta magnitude.
Redução dos cuidados
O grupo de investigação em saúde pública continua a apontar como uma causa “plausível” deste aumento de mortalidade a redução dos cuidados prestados a doentes agudos e crónicos sem covid-19. Por iniciativa dos serviços. E por iniciativa dos doentes.
Citando o Portal da Transparência, os peritos recortam que, desde que a pandemia chegou a Portugal, houve uma quebra nos serviços de saúde: caiu o número de consultas presenciais (-53%) e domiciliares (-49%) nos cuidados de saúde primários, mas também nos hospitais (-11%). Nesse período, houve até retracção nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica (-50%) e nos episódios cirúrgicos em ambulatório e as intervenções cirúrgicas (-21%), incluindo as de natureza urgente (-9%).
É certo que os cuidados de saúde primários procuraram ajustar-se a esta nova realidade: as consultas tradicionais foram, na medida do possível, substituídas por consultas não presenciais (+ 116%). E é atendendo a esta alteração que se pode dizer que o total de consultas médicas nos cuidados de saúde primários só desceu 4%. Mas está ainda para saber a consequência disso.
Os dados disponíveis não escamoteiam a atitude dos próprios utentes. Os peritos chamam a atenção para uma “queda de cerca de 8% na procura de cuidados pré-hospitalares”. “Isto sugere que doentes com sintomas graves, que justificariam accionar meios de assistência pré-hospitalar de suporte imediato ou avançado de vida, terão tido relutância em fazê-lo, com medo de se infectarem” o novo coronavírus, lê-se no boletim.
Naqueles meses, os chamados casos de baixa prioridade (5) aumentaram 41%. Daqui depreendem que “muitos casos que teriam justificado accionar estes meios antes da pandemia, foram encaminhados para a linha telefónica Saúde 24, possivelmente para manter livre uma reserva estratégica deste meio para acudir à covid-19”.
Na conferência de imprensa desta segunda-feira, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, disse que só para o ano se saberá ao certo. “Todos os países têm sempre uma demora, que é normal, entre saber o número de óbitos que aconteceram num determinado período e depois estudar as causas”, afirmou, citada pela Lusa.
Segundo explicou, todos os anos a codificação das causas de morte é feita por “profissionais altamente treinados para o efeito”. Este ano há “um sistema semiautomático para codificação das causas de morte, que ainda não vai dar certezas mas vai dar pistas e indicações”. “Muitas vezes, as codificadoras têm que voltar a entrar em contacto com o médico que fez a certidão de óbito, se houver dúvidas, ninguém a pode alterar senão o médico que a emitiu”, explicou.