A direita normalizou Ventura e o Chega
O dia 2 de Novembro fica na história como o dia em que se abriu uma comporta à direita. O movimento pode ser envergonhado, as coisas estão a acontecer no arquipélago dos Açores, e não em Lisboa, e envolvem protagonistas que não são fregueses habituais das televisões.
O deputado do Chega, André Ventura, queixou-se neste fim-de-semana, numa entrevista ao DN/TSF, de que não queria que os outros partidos fizessem uma “cerca sanitária” ao seu, insistindo na revisão constitucional. Independentemente de o PSD não alinhar na revisão da Constituição, Ventura devia dar saltos de alegria: no que diz respeito aos Açores, não houve cerca sanitária nenhuma. O PSD de José Manuel Bolieiro está a contar com a versão autonómica do Chega para aprovar o seu governo e, a avaliar pela demissão do dirigente regional, são as exigências de Ventura que estão a atrapalhar esse derrubar da cerca.
Estamos a viver um corte epistemológico na política portuguesa, em que a direita extremista nunca contou decisivamente. Se é verdade que alguma direita está contra, outra já interiorizou que o novo ciclo deve ter lá dentro os ultras. “Habituem-se”, escreveu no PÚBLICO João Miguel Tavares. Quando Pablo Casado, o líder do PP espanhol, está agora a impor um cordão sanitário ao Vox (que tem 15% no Parlamento espanhol), o PSD de Rui Rio – de cuja direcção Bolieiro é vice-presidente – atira-se para os braços de Ventura. É quase irreal, mas está a acontecer nas nossas barbas.
Quando Rui Rio veio nesta segunda-feira proclamar que o PSD está a construir nos Açores “a AD de Sá Carneiro”, porque só o CDS e o PPM entram no governo liderado pelo PSD, está a deitar foguetes na festa errada. Para chegar ao Governo dos Açores, o PSD destruiu a cerca sanitária – e não vale a pena encher-se de brios e reclamar que é “insultuoso” perguntarem-lhe, como fez o secretário-geral adjunto do PS, se concordava com as propostas de prisão perpétua ou a castração química de pedófilos.
Claro que ainda há alguma vergonha: José Manuel Bolieiro, na declaração que fez nesta segunda-feira à tarde com o CDS e o PPM, fugiu como o diabo da cruz a explicar se vai contar com o apoio parlamentar do Chega na Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Ou como vai contar. Ou quais são as condições.
Mas o dia 2 de Novembro fica na história como o dia em que se abriu uma comporta à direita. O movimento pode ser envergonhado, as coisas estão a acontecer no arquipélago dos Açores, e não em Lisboa, e envolvem protagonistas que não são fregueses habituais das televisões. Mas a partir daqui, o PSD – e também o CDS e o PPM – submete a sua sobrevivência ao apoio do Chega. Quando houver eleições no continente, já se sabe o que se espera. Este volte-face nos Açores, ao destapar o tabu de Rio, provavelmente não será muito favorável ao partido junto do eleitorado do centro. Quanto ao PSD-Açores, acaba a facilitar a vida ao PS, que estava condenado a perder as eleições daqui a quatro anos. Agora, sabe-se lá.