“O corpo está esquecido na escola”

As crianças têm pouco tempo para brincar e isso afasta-as da prática desportiva, aponta Carlos Neto, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa.

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Francisco Romão Pereira

Governo e autarquias deviam criar condições para que a actividade física seja central no 1.º ciclo, diz este especialista em desenvolvimento de habilidades motoras na infância, a propósito do estudo da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) sobre a actividade física na população escolar. Carlos Neto alerta que a pandemia está a criar uma “bolha” de “analfabetismo motor” que poderá vir a ter repercussões na saúde dos alunos.

Como se explica que, logo no 1.º ciclo, mais de um quarto dos alunos evoque “falta de tempo” como justificação para não praticar desporto?
As crianças têm agendas extensas e intensas. Passam um número elevado de horas na escola, entre aulas e Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC). Muitas têm ainda actividades extra-curriculares, fora da escola. Isto leva a que as crianças não tenham tempo para brincar livremente. Na escola, é dada prioridade às aprendizagens clássicas, como é aprender a ler, escrever e contar. Resta muito pouco tempo para que possam desfrutar da possibilidade, que consta do currículo do 1.º ciclo, de fazer actividades físicas. A disciplina de Expressão Físico Motora tem uma repercussão muita baixa no corpo das crianças, quando, do ponto de vista das politicas educacionais, seria o nível de escolaridade em que a Educação Física devia ser mais importante. É nas idades dos 4 aos 9 anos de idade que se aperfeiçoa um repertório motor e uma cultura motora necessários depois para o desenvolvimento e formação desportiva. Mas a escola só pensa o cérebro, não pensa o corpo.

Por que é que isso acontece?
No pré-escolar, as coisas estão bem. As educadoras de infância têm uma boa formação e fazem actividades motoras regulares, quer no interior quer no espaço exterior. No 1.º ciclo, começa a existir um conceito de escolaridade – e uma expectativa dos pais e dos professores – para as aquisições escolares. Isso provoca um corte na forma como se olha para o corpo. O corpo está esquecido na escola. O programa de Expressões Físico Motoras prevê duas a três horas semanais para esta disciplina, mas isso não está a ser cumprido. Muitas vezes sobram só 30 minutos para a Educação Física e os professores do 1.º ciclo acabaram por atirar esta disciplina para as AEC. Por outro lado, as provas de aferição do 1.º ciclo mostraram, além de um atraso considerável no desenvolvimento motor das crianças, que muitas escolas não têm condições materiais para a prática da Educação Física.

Qual seria o tempo ideal dedicado à actividade física nestas idades?
Há muitos países europeus onde a Educação Física tem 4 a 5 horas por semana – uma aula todos os dias, praticamente. O sedentarismo é uma realidade na sociedade portuguesa e devia haver uma preocupação governamental e autárquica no sentido de permitir que nas escolas, principalmente no 1.º ciclo, a actividade física seja fundamental. Os estudos que tenho feito mostram que as crianças brincam, em média, uma hora ou uma hora meia por semana, o que é muito reduzido. Nestas idades, eles deveriam ter muita mobilidade, muito dispêndio de energia, muito risco, muito confronto com a natureza. Há crianças que não sabem correr, não sabem saltar, não se sabem equilibrar, já não sobem às árvores, já não saltam os muros. Há uma cultura de super-protecção e de medo no que diz respeito ao corpo em movimento. Neste momento, com a pandemia e o regresso das crianças à escola, toda a gente está preocupada com a questão da recuperação das aprendizagens e da saúde mental. Mas, desde Março até agora, ninguém falou sobre o que está a acontecer na saúde física das crianças. Temo que neste momento estejamos a criar uma bolha de profundo analfabetismo motor que vai ter grandes repercussões na saúde mental e na saúde física destas crianças no futuro.

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