Scott Kelly: “A Estação Espacial Internacional devia ganhar um Prémio Nobel da Paz”

O astronauta norte-americano Scott Kelly é das pessoas que mais tempo passaram na ISS e descreve-a como uma “grandiosa história de sucesso”. No espaço, os efeitos da microgravidade sentem-se no corpo humano e está-se exposto a muito mais radiação do que na Terra. Mas, para Scott Kelly, o isolamento era uma das piores partes da missão.

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Scott Kelly na cúpula de observação da ISS NASA

A Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) tem inscrita no seu nome a cooperação entre nações, presente desde o seu início: foi montada no espaço, depois de os diferentes módulos serem construídos em diferentes partes do globo. “Acho que a ISS devia ganhar um Prémio Nobel da Paz pela importância da cooperação”, conta o astronauta norte-americano Scott Kelly ao PÚBLICO, por videochamada.

A maior parte dos que passaram pela ISS são norte-americanos e russos, um “excelente exemplo” de como é possível trabalhar “de forma harmoniosa”, sem olhar a conflitos e tensões políticas. “Os Estados Unidos e a Rússia podem ser considerados inimigos a qualquer altura – mas, ao mesmo tempo, temos esta estação espacial que partilhamos e em que cooperamos”, argumenta o astronauta. Mostra a todo o mundo que é possível deixar desacordos de lado para se trabalhar naquilo que verdadeiramente importa. Neste caso, em nome da ciência.

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Cátia Mendonça

Na ISS – que vê como um lugar e não como um objecto –, Kelly acredita que os seus companheiros são “representantes de toda a humanidade”.

Scott Kelly é, juntamente com o cosmonauta russo Mikhail Kornienko (a quem chama “Misha”), o ser humano que mais tempo passou na ISS numa única missão: foram 340 dias consecutivos. Ao todo, com outras missões, o astronauta da NASA já passou 520 dias no espaço. Mesmo depois de todo esse tempo em microgravidade, confessa que ainda se sente fascinado pela ISS estar ocupada por humanos há 20 anos: “É realmente uma conquista sermos capazes de o fazer durante tanto tempo e com tanto sucesso. É uma grandiosa história de sucesso.”

Além de ser uma das pessoas que mais tempo passou no espaço, há outra particularidade no percurso de Scott: tem um irmão gémeo idêntico, que também é astronauta. Foi com o irmão Mark Kelly que entrou na NASA, em 1996; anos mais tarde, voltaram a trabalhar juntos no Twins Study (Estudo dos Gémeos) para se deslindar o que mudava no corpo humano após um ano no espaço.

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O astronauta norte-americano numa caminhada espacial no exterior da ISS. As caminhadas espaciais são uma das coisas mais arriscadas feitas em órbita, diz Scott Kelly. São muitas horas de preparação e muitas horas no espaço, expostos à radiação. O fato espacial do astronauta estava equipado com lentes na própria viseira para que não tivesse de usar óculos NASA

Para isso, nada melhor do que dois gémeos idênticos com o mesmo ADN, mas em ambientes diferentes: Mark ficou em Terra, Scott foi para o espaço. Em microgravidade, o corpo de Scott mudou. A visão ficou afectada, o seu sistema imunitário permaneceu funcional, os telómeros (as “pontas protectoras” dos cromossomas) cresceram no espaço e diminuíram no regresso. Na altura, os cientistas da NASA diziam que este estudo provava a “resiliência e robustez” do corpo humano.

As mudanças no corpo humano “são preocupantes”, mas não necessariamente assustadoras, reconhece Scott Kelly na entrevista. “Estamos cientes do risco. Quanto mais tempo lá estivermos, mais expostos ficamos a esse risco.”  

Estas missões na Estação Espacial Internacional são importantes para perceber os efeitos da microgravidade e da radiação no corpo humano, conhecimento que poderá ser útil em futuras viagens interplanetárias. Os problemas relacionados com a gravidade poderão ser atenuados pela gravidade de Marte, cerca de um terço daquela que existe na Terra. “Os desafios acabam por estar mais relacionados com a forma como se pode proteger a tripulação de radiação, é algo que tem de ser resolvido. Porque se pode estar em contacto com dez vezes mais radiação do que aquela com que lidamos em órbitas mais baixas na Terra”, defende o astronauta. Scott Kelly não tem dúvidas de que uma viagem até Marte acontecerá – só resta saber quando. O problema nem é tecnológico, diz: “Politicamente, é um longo caminho.”

A pandemia também pode mudar prioridades e atrasar a exploração espacial, adivinha o astronauta. “Neste clima fiscal em que os governos gastavam bem mais do que podem já antes do vírus – e agora ainda mais –, estas decisões vão tornar-se ainda mais difíceis.”

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Scott Kelly a beber um café espacial da máquina ISSpresso NASA

Scott Kelly diz que um ano no espaço “testa mais a resistência psicológica do que física”. No livro Endurance – Um Ano no Espaço, Uma Vida de Descobertas, o astronauta diz que o isolamento é das piores partes de viver no espaço, mas que o ensinou a lidar com o confinamento imposto pela pandemia. “É muito diferente, mas há paralelos”, refere. E deixa algumas dicas: seguir uma rotina com variedade, ter tempo para descansar e para outros passatempos, ter planos diferentes no fim-de-semana para se ter algo “para ansiar”. É importante estar conectado com a família e amigos e passar tempo no exterior, por causa da luz solar. Outro passo importante é confiar-se na ciência e em fontes fidedignas – sem dar ouvidos a teorias da conspiração. “Não sei como podem negar que isto seja verdade quando, neste país, morreram mais de 200 mil pessoas. Está ao nível das teorias da conspiração de que não fomos à Lua.”

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