A Contra-Revolução Francesa do islamismo radical
A liberdade de expressão e o poder político democrático e humanista não são um dado adquirido, mas uma conquista permanente de cada geração.
1. Até às últimas décadas do século XX poucos consideravam seriamente a possibilidade de uma reversão dos princípios e valores da Revolução Francesa ter origem em ideias não europeias/ocidentais. Nos inícios do século XXI que vivemos, é fácil constatar que os europeus ainda estão largamente imbuídos das imagens e dos poderosos quadros mentais criados entre o século XVIII e o século XX. Sejam conservadores ou progressistas, imaginam que as ideias e ideologias políticas que marcam o curso da História são ainda as que tiveram origem no que lhes é familiar. Sobretudo, representam ainda mentalmente uma Europa e um mundo que continuariam a ser largamente moldados por ideias/ideologias de origem euro-ocidental de direita — conservadoras das instituições sociais e políticas tradicionais — ou de esquerda — progressistas e transformadoras da realidade social.
2. O quadro mental descrito já foi ultrapassado pela realidade, mas a sua persistência intelectual é um enorme obstáculo à compreensão das tendências que se desenham no mundo contemporâneo. Os europeus e ocidentais não estavam preparados, nem estão ainda hoje, para um mundo cada vez mais influenciado por ideias e ideologias com origem em culturas não ocidentais tradicionalistas. Tais culturas supostamente hoje já seriam modernas e seculares como nós, se a profecia do progresso universal da humanidade se tivesse realizado integralmente.
Um caso especial desse problema é a França, pelo papel histórico de primeira grandeza que teve na configuração da modernidade política secular europeia e do ideário democrático e liberal. A categorizarão das ideias políticas como sendo de direita ou de esquerda teve origem na Revolução Francesa. Tal como a ideia do Estado secular ou laico e de uma separação entre o Estado e as Igrejas sob primazia última do poder do Estado que define as regras dessa separação (e lhes confere liberdade de culto).
3. É necessário lembrar que a modernidade política secular demorou um longo período histórico a enraizar-se na Europa e no Ocidente. O século XIX e a primeira metade do XX foram marcados por avanços e recuos desse processo, bem como por longas lutas culturais-sociais e políticas, incluindo múltiplas revoluções e contra-revoluções. A separação entre as igrejas e o Estado foi largamente contestada durante muito tempo e com inúmeros episódios violentos um pouco por toda a Europa.
No caso francês, as ondas de choque iniciaram-se com a Revolução Francesa de 1789 — é bem conhecido o período do Terror sob o governo revolucionário de Maximilien Robespierre e dos Jacobinos — e prolongaram-se pelo menos até à Lei de 1905 sobre a laicidade do Estado criada pela III República Francesa. No Ocidente europeu, sobretudo pós-II Guerra Mundial, esse processo histórico turbulento deu gradualmente lugar a uma nova era de pacificação e de tolerância política e religiosa. O Estado democrático e pluralista moldado por valores e princípios jurídico-constitucionais seculares / laicos — e com diferentes arranjos específicos com a(s) Igreja(s), consoante os processos históricos e identidades nacionais — ganhou uma ampla legitimidade e aceitação social e política.
4. Hoje é fácil constatar que o edifício jurídico-constitucional democrático e pluralista que se criou na Europa para pacificar a questão religiosa — tendo esta última, em si mesma, uma incontornável dimensão política —, não foi pensando, nem estava preparado, para enfrentar uma contestação cultural-social e religioso-política oriunda de ideias/ideologias não-ocidentais. Ao mesmo tempo, não é surpreendente também que seja em França — o país que no Ocidente europeu teve, no passado, choques mais violentos com a sua religião tradicional (o Cristianismo Católico) — estejam agora ocorrer os maiores choques com o islamismo radical.
Como subproduto do Islão, o islamismo radical é o seu lado mais politizado e contestatário, mas também o mais intolerante e, sobretudo, imbuído de maior fundamentalismo nas interpretações dos preceitos religiosos do Islão. Alimenta, por isso, directa ou indirectamente, a propensão para o radicalismo que, no limite, leva à violência pela via do jihadismo. Quanto à natureza do islamismo radical e da sua contestação, trata-se, pelas características apontadas, de uma contestação tradicionalista (não ocidental) e ultra-conservadora (não cristã) em rota de colisão com os princípios, valores e regras da ordem jurídico-constitucional secular/laica que contrariam as suas convicções religioso-políticas mais profundas, em múltiplas facetas: liberdade de opinião e de crítica, igualdade de género e papel social da mulher, concepção de família, liberdade sexual, entre outras.
5. Os atentados terroristas das últimas semanas em França, que tiveram por alvo quer o professor de uma escola republicana laica (nos arredores de Paris), quer o sacristão e fiéis de uma igreja (em Nice), não deixam dúvidas sobre a rota de colisão frontal entre o ultra-conservadorismo não-ocidental dos islamistas radicais e os valores jurídico-constitucionais da actual República Francesa.
Todavia, trata-se, apenas, da ponta visível (e violenta) de uma Contra-Revolução Francesa que se trava sobretudo nas instituições da sociedade e no sistema de ensino. Agora não é feita pelos usuais movimentos conservadores de (ultra)direita autóctones — algo que os franceses e europeus já conhecem bem da experiência do passado e se dotaram de mecanismos jurídico-constitucionais para conter —, mas por grupos religioso-políticos e ideários que conhecem mal, confundindo-os e paralisando-os.
Assim, o terreno é particularmente favorável aos islamistas radicais. Por um lado, exploram o já referido mau conhecimento do que não é europeu e ocidental, bem como os complexos culpa na Europa devido ao passado colonial recente, cujas feridas ainda não se encerraram. Por outro, aproveitam-se do enorme dinamismo demográfico e juventude das populações oriundas do Sul do Mediterrâneo e de outras partes do mundo islâmico, que radicalizam e instrumentalizam para a sua causa. O seu alvo maior são os valores seculares laicos da primazia das regras jurídicas dos Estado sobre os preceitos religiosos. Estes últimos são vistos como imutáveis e não susceptíveis de qualquer cedência, compromisso ou reinterpretação face às condições da modernidade secular.
6. A Contra-Revolução Francesa operada pelo islamismo radical veio reabrir no século XXI a questão da legitimidade última do poder político democrático e das leis do Estado. Os europeus não estavam nada preparados para isso. Este surpreendente volte-face da História estava fora do seu horizonte de futuro. Inebriados pelo sucesso da sua experiência particular viveram a ilusão de terem criado um modelo universal que todos os outros povos replicariam, mais cedo ou mais tarde. Pensavam ter virado definitivamente essa página da História. É verdade que o fizeram, em larga medida, como notado, quanto à religião que lhe é familiar (o Cristianismo), mas não contavam com a força e determinação de uma contestação oriunda do exterior, agora também já bem implantada no seu próprio território: o islamismo radical. Por isso, não têm quadro mental, nem político, nem jurídico, adequado para enfrentar o problema nas suas múltiplas e complexas dimensões, preservando, ao mesmo tempo, os seus valores democráticos e os direitos humanos fundamentais.
7. Em última instância, o caso das caricaturas do Profeta Maomé — que já gerou inúmeras mortes em França, na Europa e noutras partes do mundo — é uma disputa sobre a legitimidade última do poder. Essa legitimidade deve ser humana (secular) ou ser divina (religiosa)? E podem, ou devem, as leis seculares do Estado alterar/anular as regras divinas, quando as consideram inapropriadas? Pode também a liberdade de expressão — que implica, se for plena, a liberdade de sátira e a possibilidade do outro se sentir ofendido com isso — anular a tradicional (grave) ofensa de blasfémia sobre os profetas e credos religiosos, no sentido em que o seu autor estará ao abrigo de uma sentença de morte e de uma pesada pena de prisão aplicada pelo Estado, ou de execução por “justiça popular”?
Sabemos qual foi a resposta que os europeus ao longo dos últimos dois séculos deram a essas questões, bem como os enormes sacrifícios e perdas de vidas humanas que isso implicou. Não sabemos se as gerações actuais de europeus — as grandes beneficiárias dessas lutas do passado —, por indiferença, negligência ou erro de percepção, estarão dispostas a similares sacrifícios. A liberdade de expressão e o poder político democrático e humanista não são um dado adquirido, mas uma conquista permanente de cada geração.