O vírus acelerou o “milagre económico” da China
Se a China foi o berço da pandemia, foi também a primeira potência a controlá-la, com meios que as democracias não podem usar.
Enquanto a Europa e a América estão a braços com a pandemia e fazem planos para semanas, Pequim repensa a sua estratégia económica a médio prazo
Com a pandemia da covid-19 sob controlo, a China vê a sua economia crescer e repensa a sua estratégia económica para se adaptar à nova conjuntura internacional e reforçar a sua posição no confronto com os Estados Unidos. Há uma nota significativa: enquanto na Europa e nos EUA se fazem planos para meia dúzia de semanas, a China aprova um plano para cinco anos, inserido num horizonte mais longo – a “Visão 2035”. Enquanto os EUA estão envolvidos numa feroz batalha eleitoral, num clima de grande incerteza e a braços com uma nova vaga da pandemia, a covid acelera a recuperação económica da China.
O anúncio de um crescimento do PIB chinês, de 4,9%, no terceiro trimestre não foi grande surpresa para os meios económicos. É uma consequência do controlo da pandemia. Neste mesmo trimestre, os EUA registaram um crescimento de 7,4% e a zona euro de 12,7%. Mas há uma diferença fundamental. No fim do ano, prevê-se que o crescimento do PIB chinês supere os 2%, o mais forte no conjunto das economias do G-20. Em contrapartida, os EUA poderão registar um saldo negativo de 4% e a Europa uma taxa negativa mais alta. No começo do quarto trimestre, o controlo da pandemia parece dependente do aparecimento da vacina.
Ao mesmo tempo, a pandemia permitiu a Pequim aumentar a sua quota no comércio mundial, aproveitando a forte procura de produtos de combate à covid. A China continua na rota de se tornar na maior economia mundial em 2030, afirma Justin Yifu Lin, antigo economista-chefe do FMI. “Pequim pode agora olhar em frente, enquanto as outras grandes economias tratam de minorar os estragos e controlar a dívida.”
A “circulação dual”
A reunião plenária do Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC) terminou na quinta-feira, em Pequim, e definiu uma nova estratégia de desenvolvimento. O Plano 2021-25 só será divulgado em 2021, mas Xi Jinping já anunciou as grandes linhas. Tem duas vertentes.
A primeira foi designada por “circulação dual”. É uma aposta no crescimento do mercado interno e do consumo para promover o aumento dos rendimentos, reduzir as desigualdades e tornar a China menos vulnerável às turbulências da globalização e às crises geopolíticas. O Estado deverá orientar o ciclo da produção, circulação, distribuição e consumo no território nacional. A circulação interna deverá reduzir a dependência das exportações, uma das grandes vulnerabilidades da economia chinesa.
Neste plano, será dada prioridade à inovação tecnológica. O objectivo final, promete Xi, é elevar os padrões da sociedade chinesa, de forma a proporcionar um rendimento alto aos cidadãos.
O plano quinquenal inscreve-se num horizonte mais largo, designado por “Visão 2035”. Entre os objectivos está a remodelação de um ambiente devastado pelo crescimento industrial forçado. Esta vertente, relativa ao médio prazo, visa alcançar um estatuto de vanguarda nas tecnologias de nova geração, no momento em que as tensões com os Estados Unidos não se circunscrevem ao comércio mas dizem respeito, sobretudo, ao domínio da alta tecnologia. A China quer passar de “fábrica do mundo” ao estatuto de colosso tecnológico.
Para acelerar a recuperação pós-covid, a China recorreu a grandes investimentos públicos, como várias linhas de comboios de grande velocidade. Por fim, nos últimos meses, houve uma clara recuperação do consumo interno. O Presidente Xi passa a ter uma “poderosa narrativa” para conservar ou alargar o seu próprio poder.
Note-se que Pequim não se quer fechar ao investimento externo, nem aos bens e serviços importados, nem renunciar às exportações. Trata-se, simplesmente, de mudar o acento tónico: uma economia mais baseada no mercado interno e menos na integração internacional.
O historiador britânico Rana Mitter, um dos mais reconhecidos especialistas da China contemporânea, assinala o alcance e os limites da nova política. “A China está a tentar criar dois sistemas ligados, mas distintos. Um é uma economia doméstica nacionalista, que faz evocar uma ideia da era de Mao, a de auto-suficiência (…).” O outro ponto diz respeito à tecnologia. “A China está a investir fortemente na investigação e desenvolvimento. O vírus, de facto, deu um impulso à ciência chinesa em diversas áreas, da biotecnologia à inteligência artificial”.
No entanto, “a ‘circulação dual’, a ideia de que a China pode separar a economia doméstica das economias internacionais é insustentável a longo prazo. Mais reformas estruturais serão necessárias. E há outros temas, como a poluição, a mudança climática e o declínio demográfico – a partir de 2029, haverá menos cinco milhões de chineses por ano e uma população a envelhecer rapidamente.”
Não será o século chinês
É preciso distinguir entre uma conjuntura excepcional e uma nova ordem. Se a conjuntura da pandemia favorece a China, não se pode daí deduzir que esteja a caminho de substituir a América no plano geopolítico. À pandemia, que enfraqueceu as democracias ocidentais, soma-se outro elemento que joga a favor da China: Trump e as eleições americanas. São um factor de caos político, paralisia internacional e incerteza económica.
“[O século XXI], no pós-covid, não será o século americano. Mas também não será, assim não facilmente, o século chinês”, escreve a analista italiana Marta Dassù. “Será, mais realisticamente, o século do Pacífico, no sentido de que a competição geopolítica entre os EUA e a China se decidirá nos mares da Ásia Oriental.” A Europa não será o terreno directo desse confronto, mas será um actor decisivo na balança de forças entre a China e a América.
Uma derradeira nota. Se a China foi o berço da pandemia, foi também a primeira potência a controlá-la, com meios que as democracias não podem usar. Lembrem-se os progressos da China na utilização da inteligência artificial como meio de controlo da população.
O Ocidente acabou por adoptar a estratégia chinesa do confinamento. Mas não pode utilizar meios totalitários de controlo das pessoas. “Felizmente é impossível”, responde o jornalista italiano Danilo Taino. “É esta contradição que impediu a Europa e os Estados Unidos de vencer a pandemia. Teremos de conviver com ela por muito tempo.” Nas sociedades ocidentais, para o bem ou para o mal, a única garantia de vencer a pandemia reside no comportamento dos cidadãos.