O número de pessoas a sofrer de fome crónica no mundo já estava a aumentar antes da pandemia
Mesmo sem covid-19, já se previa que, em 2030, 840 milhões de pessoas estivessem subalimentadas. A abordagem para erradicar a fome tem de passar pela ideia de “uma só saúde”, defende o Índice Global da Fome 2020.
No fim de 2019, o mundo já não estava no bom caminho para alcançar a meta “Fome Zero” em 2030, um dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos em 2015 pelas Nações Unidas. Mas as várias “crises sobrepostas de 2020”, principalmente a crise económica que resulta da pandemia, ameaçam agora reverter até os progressos alcançados nos últimos anos.
Segundo o Índice Global da Fome (IGF), realizado anualmente por duas organizações não-governamentais (a irlandesa Concern Worldwide e a alemã Welthungerhilfe) para tentar “medir e rastrear a fome a nível global, regional e nacional”, há mais de 50 países onde os níveis da fome continuam “graves” e “alarmantes”. As projecções do IGF 2020, a última edição do relatório, que esta quarta-feira teve a sua apresentação para Portugal, indicam que pelo menos 37 países não vão conseguir sequer atingir um nível de fome “baixo” até 2030.
Estes eram os dados disponíveis em 2019, quando ainda não havia forma de avaliar as consequências das várias crises em curso em 2020, que o relatório descreve como “ano desastroso” – “uma pandemia global, uma praga devastadora de gafanhotos [na África Oriental] e uma recessão económica que afecta todos os cantos do globo”. O impacto destas múltiplas crises “está a aumentar rapidamente a insegurança alimentar e nutricional para milhões de pessoas, especialmente as que já são muito vulneráveis”.
Em termos globais, a percentagem de pessoas subalimentadas no mundo estagnou desde 2018 (8,9%), mas o número absoluto de pessoas nesta situação aumentou: no final de 2019, as pessoas subalimentadas (que consomem muito poucas calorias) no mundo eram 690 milhões (mais dez milhões desde 2018 e mais 60 do que em 2014). Para além destas, 135 milhões de pessoas enfrentavam há um ano níveis de insegurança alimentar aguda e 47 milhões de crianças sofriam de emaciação, um sinal de subnutrição aguda”.
Os índices do IGF baseiam-se nos valores de quatro indicadores: subalimentação, emaciação infantil (percentagem de crianças com menos de cinco anos que têm pouco peso para a sua altura, o que reflecte subnutrição aguda), raquitismo infantil (crianças com pouca altura para a idade, reflectindo subnutrição crónica) e mortalidade infantil. A partir destes valores, o IGF determina o nível de fome numa escala de 100 pontos onde zero é “sem fome”, e depois classifica cada país por gravidade, de “baixa” a extremamente alarmante”.
Considerado como um todo, a fome no mundo (a edição de 2020 do IGF foram avaliados dados de 132 países) está num nível “moderado”. A África a Sul do Sara e o Sul da Ásia têm os níveis mais elevados de fome e subnutrição entre as regiões do mundo, com pontuações de 27,8 e 26. Os três países onde a fome é classificada como mais “alarmante” são o Chade – nação com os níveis de fome mais preocupantes mas onde se registam “progressos limitados” – e dois países onde a situação tem vindo a piorar, Madagáscar e Timor-Leste.
Falta de informação
Há outros oito países onde a fome é considerada de nível “alarmante” mas de forma provisória, isto porque faltam dados para responder a todos os critérios em que o índice se baseia. O que isso significa que é vários destes países – Burundi, República Centro Africana, Comores, República Democrática do Congo, Somália, Sudão do Sul, Síria e Iémen – podem na verdade estar numa situação de fome “extremamente alarmante”. É o caso, por exemplo do Iémen. “Claro que sabemos com base noutros índices que a inanição é um problema muito sério no país”, diz Miriam Wiemers, responsável de relações externas na ONG Welthungerhilfe.
Mas não só: “O relatório aponta para zonas onde a situação já era preocupante antes e pode tornar-se muito pior com as diferentes crises de 2020, incluindo as secas cada vez mais extremas. Outro exemplo de um país onde não temos informação suficiente é a República Democrática do Congo (RDC), categorizado como ‘alarmante’ no IGF mas que pode estar, de facto, ainda pior”, sublinha Wiemers. E é o mais provável, defende, já que “a RDC acabou de ser declarada a prior crise alimentar mundial pela ONU”.
A fome está classificada como “grave” em 31 países, mas mais uma vez, há outros nove países provisoriamente classificados como vivendo numa situação de fome “grave” mas onde o cenário real pode ser pior.
Agravamento na Venezuela
E se as pontuações do IGF melhoraram desde 2012 para 46 países hoje classificados como de fome “moderada”, “grave” ou “alarmante”, há 14 países nas mesmas categorias em que a fome e subnutrição se agravaram. É o caso de dois países de língua oficial portuguesa: Timor-Leste, que com uma fome “alarmante” é o segundo país com pior resultado global, e Moçambique, onde a fome é “grave”.
Mas o país onde o agravamento da situação é mais significativo é a Venezuela, que passou de uma pontuação de 7,6 em 2012 (“baixa”) para 23,5 em 2020 (“grave”), período em que “sofreu graves crises alimentares impulsionadas pela hiperinflação, uma rápida contração do PIB, uma dependência excessiva das receitas petrolíferas associada à queda da produção petrolífera, e uma má governação caracterizada por uma corrupção desenfreada e uma autocracia crescente”.
Bons exemplos são, por outro lado, Angola, Etiópia e a Serra Leoa, que desde 2020 “registaram melhorias expressivas, com as pontuações do IGF a caírem mais de 25 pontos”.
Sistemas alimentares frágeis
Em termos globais, o que a pandemia do novo coronavírus veio confirmar, diz o IGF, é “a fragilidade e as desigualdades dos nossos sistemas alimentares globalizados actuais, a ameaça à saúde global e à segurança alimentar imposta pelo crescente impacto humano no ambiente e na vida selvagem”, assim como “a necessidade de enfrentar estes desafios de uma forma holística e ambiciosa”.
É por isso que o IGF 2020 inclui um ensaio dedicado à abordagem “one health” (“uma só saúde”), onde se propõe uma alteração radical dos sistemas alimentares actuais, com base na ideia de que só poderão ser atingidos progressos significativos na erradicação da fome se este combate se focar no “aumento de práticas agrícolas sustentáveis e na melhoria da saúde e bem-estar geral dos seres humanos, animais e do ambiente”.
Face a um retrato que não é animador, o relatório sublinha que as crises actuais podem e devem “servir como um ponto de viragem não só para transformar os nossos sistemas alimentares, mas também para pôr fim ao flagelo diário da fome, o maior fracasso moral e ético da nossa geração”.