Em resposta à carta aberta à ministra da Saúde, subscrita por bastonários da Ordem dos Médicos
Com a proposta destes “influenciadores”, só aumentariam as insuficiências que se apontam ao SNS, bem como o que os portugueses teriam de pagar pela sua saúde.
A carta dirigida à ministra da Saúde pelo bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e cinco dos seus antecessores enquadra-se num movimento mais amplo de intervenções de “influenciadores” nos meios da comunicação social e em meios universitários, todas com a mesma orientação e a mesma substância.
Começam por enunciar dificuldades reais do SNS, sobretudo derivadas da pandemia, ampliam-nas em tom alarmista e daí passam ao ataque político à ministra. Finalmente, e para culminar, chegam ao objetivo mercantil: perante tal “caos”, “desorganização” e “risco” há que recorrer aos serviços privados.
Poderá haver médicos concordantes com essa carta, por coincidirem com os seus objetivos. Nós não. Não nos sentimos representados.
A Ordem dos Médicos é uma entidade de direito público, de inscrição obrigatória. Portanto, as posições expressas pelos seus órgãos eleitos têm que corresponder ao máximo denominador comum.
Todos os cidadãos têm o direito de, em grupo ou isoladamente, expressarem as suas opiniões. O que não é lícito é que a natural credibilidade da Ordem dos Médicos seja mobilizada para as posições pessoais de ex-bastonários e do seu bastonário atual. Descrevendo um ambiente de perigo iminente, vaticinando a falência do SNS e amplificando as suas dificuldades, desassossegando e perturbando a saúde mental das famílias e, sobretudo, das pessoas mais idosas e mais isoladas.
“(...) não há tragédia maior do que esta”, diz a carta dos (ex-)bastonários. É bom que se tenha respeito pelas verdadeiras tragédias. É bom que se contribua para a perceção de risco de forma racional e transmitindo a serenidade necessária a quem de facto tem de fazer escolhas todos os dias e tomar as precauções para prevenir o contágio. O alarme transmite pânico e bloqueia a capacidade de decidir racionalmente.
Sabemos que o financiamento para o Serviço Nacional de Saúde tem sido curto ao longo de anos e que os seus custos superam sempre os valores orçamentados. Sabemos também que o Orçamento do Estado para 2021 é insuficiente no que respeita à saúde e a única atenuante é que haverá outra perspetiva quando se discriminar a utilização do Fundo de Recuperação Europeu nesta área. Sabemos também que os concursos para médicos ficam com vagas por preencher porque os salários são baixos, porque a carreira não é atrativa, porque há um excesso de horas extraordinárias e porque é maior a recompensa remuneratória nos estabelecimentos privados.
A resposta exemplar do SNS na primeira vaga não foi só devida à abnegação de médicos e outros profissionais. Deveu-se também à estrutura e ao espírito do SNS. Diz a carta: “É vital que haja uma mudança imediata de rumo na estratégia do SNS. O SNS está novamente exposto a uma disrupção grave no seu funcionamento, na altura em que ainda nem sequer foi capaz de recuperar o fortíssimo abalo sofrido ao longo dos últimos meses”. Era este também o tom de mais uma intervenção do atual bastonário da OM no jornal da RTP-2, às 21h30 de dia 21 de outubro. Curiosamente, cerca de 1 hora depois, na Grande Entrevista da RTP3, o diretor dos Cuidados Intensivos do Hospital de São João, Nelson Pereira, descrevia que logo a seguir ao confinamento tinham estado a preparar tudo para uma eventual segunda vaga e que, tendo recuperado de tal modo as listas de espera não-covid, até tinham ultrapassado a produção do período homólogo do ano anterior.
Sabe-se que o País é heterogéneo. Não podemos, por exemplo, generalizar as dificuldades, por razões locais, do Vale do Sousa ou de Lisboa e Vale do Tejo para a região Centro onde, durante o ano 2020, têm sido feitos mais rastreios e vacinações que no ano anterior.
Mas a carta e os “influenciadores” são claros no que propugnam: “Os setores sociais e privados podem ser mais envolvidos no esforço Covid e não-Covid para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada” e “(...) o momento do SNS liderar uma resposta global, envolvendo (...) os setores privado e social”. Muito simplesmente, tratar-se-ia de levar o SNS a comprar (ainda mais) serviços aos estabelecimentos privados, aqueles que, no início da crise, praticamente fecharam, logo disseram que não recebiam doentes com covid-19 e enviaram grávidas positivas para os serviços públicos.
Mas será que o SNS não está mesmo a utilizar privados em suplementação dos seus serviços internos?
Bem pelo contrário. De acordo com o Jornal de Negócios de 26 de agosto, 41% do orçamento do SNS é para pagar a privados. Em 2018, últimos números a que temos acesso, 6657,7 milhões de euros foram para comprar serviços a privados (exames auxiliares de diagnóstico, hemodiálise, fisioterapia), num total de custos de 10.909,3 milhões de euros (Relatório e Contas, 2018 - Processo de Consolidação de Contas). E, no momento em que o SNS está a fazer cerca de 20.000 testes diários de RT-PCR ao SARS-COV-2, 55% dos quais nos privados, em muito aumentou (600 mil euros/dia) o fluxo financeiro que sai do Estado para o setor privado.
A concretização da proposta de operacionalização do chamado “sistema” de saúde, com “normalização” da compra de serviços de saúde a prestadores privados, subverteria o conceito constitucional do Serviço Nacional de Saúde. Com esta proposta, só aumentariam as insuficiências que se apontam ao SNS, bem como o que os portugueses teriam de pagar pela sua saúde.
O sentido da melhoria do SNS é exatamente o contrário: reforço da capacidade interna, para melhor servir a população em todas as necessidades de saúde e não apenas nas que dão lucro.
Nós, médicos que aqui assinamos, não nos sentimos representados por esta posição dos (ex-)bastonários.
Aguinaldo Cabral, Álvaro Brás de Almeida, Ana Abel, Ana Jorge, Ana Raposo Marques, António Jorge Andrade, António Faria Vaz, António Rodrigues, Augusto Goulão, Bruno Maia, Carlos França, Carlos Silva Santos, Carlos Vasconcelos, Casimiro Menezes, Filipe Rosas, Graciela Simões, Henrique Delgado Martins, Isabel do Carmo, Jaime Mendes, João Álvaro Correia da Cunha, João Goulão. João Manuel Valente, João Marques Proença, João Oliveira, João Rodrigues, Joaquim Figueiredo Lima, José Labareda, José Manuel Boavida, José Manuel Braz Nogueira, José Ponte, Júlia Duarte, Luiz Gamito, Manuela Silva, Maria Deolinda Barata, Maria Isabel Loureiro, Mário Pádua, Patrícia Alves, Pedro Miguéis, Pedro Paulo Mendes, Rogério Palma Rodrigues, Sara Proença