O trabalho (antes do vírus) segundo o Doclisboa
Aí está o primeiro programa temático da edição 2020 do festival: filmes que pensam o que é o trabalho no século XXI, mas que não perdem actualidade com a pandemia.
Há algo de peculiar em ver os filmes que o Doclisboa 2020 seleccionou para o programa Corpo de Trabalho, que preenche o grosso destes primeiros dias do festival. São filmes, como o próprio nome do ciclo indica, que se debruçam sobre o trabalho e sobre a incapacidade de lhe fugir mas também sobre o desejo de o melhorar. Mas há algo de estranho em olhar, agora, para obras que filmam o trabalho antes da covid-19, como se estivéssemos a ver transmissões ou registos de um passado recente que já nos parece arcaico ou antiquado. Como se, de repente, a ideia de fazer um estágio de alguns meses num estúdio de restauro deixasse de fazer sentido, ou como se manter um quiosque de jornais deixasse de ser uma actividade viável.
A verdade é que — como demonstra The Disrupted, da americana Sarah Colt (São Jorge, dia 27, às 19h, e dia 28, às 15h), acompanhando o percurso de três americanos afectados de maneira diferente pelas crises quotidianas que enfrentamos — a viabilidade puramente financeira já há muito que se tornou a palavra-chave das forças economicistas e mercantilistas em jogo no mundo laboral, escamoteando a dimensão humana e emocional do emprego. O trabalho não é apenas uma simples questão de realizar uma tarefa em troca de um ordenado que nos permita viver: é também a construção de uma comunidade.
Talvez nenhum filme deste programa o demonstre melhor do que o delicado e encantador Le kiosque (São Jorge, dia 31, às 15h), ou como uma artista plástica vai ajudar a mãe no quiosque de jornais e revistas que a família mantém no centro de Paris e confronta comunidade e mercantilismo num mesmo movimento. Alexandra Pianelli filma ao longo de um ano, literalmente na primeira pessoa, com o seu telemóvel e com apreciável bonomia, os clientes regulares com quem cria laços de afecto e as pequenas astúcias de ter de se movimentar diariamente num espaço exíguo afogada pela oferta absurda de publicações ou de lidar com os dilúvios invernais.
Mas mostra também as consequências humanas da crise da imprensa ou das lutas laborais das gráficas e dos distribuidores. Um efeito-borboleta que revela a fragilidade dessa comunidade improvisada da Place Victor Hugo, pacientemente construída ao longo de anos, mas sempre à mercê de ser destruída de um momento para o outro por tempestades contra as quais nada pode.
Força sindical
É também essa fragilidade sempre à beira da destruição que, de modo assinalavelmente mais teórico e abstracto, a espanhola Elisa Cepedal regista em Work, or to Whom Does the World Belong (São Jorge, dia 30, às 15h), que faz a história do movimento sindicalista nas minas das Astúrias ao longo do conturbado século XX e até aos dias de hoje. O filme de Cepedal tem qualquer coisa de “mensagem do futuro”, graças a uma inquietante e entomológica voz-off em inglês que parece ler um manual de História, mas é também um registo da coragem e do desespero de gente apanhada na voragem do capitalismo — por aí, faz todo o sentido olhar para Work como uma “adenda” ou um “post-scriptum” do magnífico El Año del Descubrimiento, de Luis López Carrasco, que vimos ainda há pouco no IndieLisboa.
E o filme de Cepedal remete-nos também para o seminal Workers Leaving the Factory in Eleven Decades, do mestre Harun Farocki, magistral ensaio-exegese fílmico programado pelo Doclisboa numa retrospectiva paralela (onde marcam igualmente presença Shohei Imamura, Alain Cavalier, Joris Ivens ou Heike Sander), disponível apenas online, até dia 3 de Novembro, na plataforma DAFilms. Farocki alinha imagens de trabalhadores saindo ao fim do dia do seu local de trabalho ao longo de décadas — começando pelo ponto zero do cinema, a saída dos operários da fábrica que os irmãos Lumière rodaram em 1895 — e demonstra que há uma história social alternativa escondida nas suas entrelinhas (Elisa Cepedal alude aliás a Farocki num segmento central do seu documentário, quando espectadores asturianos vêem um filme alemão dos anos 1930 em que se debate, precisamente, a sociedade e o trabalho).
O passado, portanto, encerra sempre lições para o presente (e mesmo para o futuro), e é por aí que a estranheza de ver no Doclisboa filmes sobre o trabalho pré-covid questiona o espectador. Olhe-se para Scenes in an Atelier, da alemã Madelaine Merino (São Jorge, esta segunda-feira, às 19h, e dia 27, às 15h): três raparigas alemãs que contemplam a possibilidade de seguir o restauro de arte como carreira e fazem o estágio curricular exigido antes de se inscreverem na escola técnica. Merino filma as suas conversas, e através delas as suas expectativas, os seus sonhos, as suas personalidades; Valerie, Lili e Isabella perguntam-se se é realmente isto que querem fazer da vida ou se estão apenas a protelar uma qualquer entrada na idade adulta, se não prefeririam um trabalho mais “garantido”.
Tudo muito burguês por comparação com a classe trabalhadora asturiana, sim, mas as perguntas que as três jovens se colocavam antes da pandemia são as mesmas que qualquer um se coloca nestes dias: o que quer dizer, no fundo, trabalhar? E até que ponto é possível construir uma comunidade quando é preciso garantir a subsistência?