Portugal descobriu no Giro um “voltista” e um “montanhista”

A Volta à Itália 2020 foi histórica para as cores portuguesas: João Almeida terminou em quarto da geral, depois de 15 dias com a camisola rosa; Rúben Guerreiro ficou com o prémio da montanha, o primeiro português a fazê-lo numa das grandes voltas.

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João Almeida foi dono da "rosa" durante 15 etapas no Giro 2020 LUSA/LUCA ZENNARO

Um ciclista pode passar uma carreira inteira no confortável anonimato do pelotão. Uma equipa de ciclismo é uma estrutura altamente hierarquizada, em que cada um cumpre o seu papel e em que poucos estão autorizados a ganhar. João Almeida nem sequer era para estar na Volta à Itália 2020 - o plano da sua equipa, a Deceuninck- Quick Step, era lançar Almeida na Vuelta, e dar o Giro a Remco Evenpoel. Mas o belga não estava disponível (caiu na Volta à Lombardia) e o português de 22 anos avançou para pedalar nas estradas de Itália, sem qualquer experiência nas grandes voltas e sem nunca ter corrido uma prova com esta extensão. Ele não sabia o que era o Giro e poucos saberiam quem era João Almeida.

Não terá havido um desportista português tão falado nas últimas três semanas como o rapaz de A-dos-Francos que brilhou a grande altura no Giro 2020. Tudo o que ele fez foi histórico. O seu quarto lugar na classificação final foi o melhor resultado de um ciclista português no Giro, ultrapassando o quinto posto de José Azevedo em 2001 – melhor que ele numa das grandes voltas, só Joaquim Agostinho, segundo na Vuelta em 1974 e terceiro no Tour em 1978 e 1979. Passou 15 das 21 etapas com a camisola rosa no corpo (da 3.ª à 17.ª, um recorda da prova para um corredor sub-23), a sua pior classificação numa etapa foi um 28.º, terminou 11 etapas no top-10, duas delas em segundo e duas em terceiro.

Numa palavra, João Almeida revelou-se como um “voltista” nestas três semanas, um ciclista multidisciplinar que brilha no contrarrelógio e consegue subir montanhas com os melhores, que não tem medo de atacar para ir ganhar alguns segundos e que cerra os dentes quando está em dificuldades e não se deixa ficar para trás. Mesmo depois de perder a “rosa” à 17.ª etapa e cair para o quinto lugar, Almeida manteve o foco na corrida e ainda foi buscar o quarto posto na etapa final, um curto “crono” de 15km com final em Milão no qual entrou a 23 segundos de Pelle Bilbao (Bahrain), ganhando-lhe 35 segundos – foi, aliás, o único do “top 10” a estar entre os dez primeiros da etapa.

A pergunta óbvia depois de uma estreia com estrondo numa das grandes voltas é: e agora? Palavra ao próprio João Almeida, para quem este foi um Giro de descobertas. “Há três semanas, o meu objectivo era ficar no top-10, ficar em quarto nesta corrida tão bonita é espectacular. Descobri muita coisa sobre mim. Mentalmente, fui até ao limite e dei sempre tudo. Saio desta corrida com memórias muito bonitas, a melhor de todas no dia em que conquistei a ‘rosa’ no Etna, e vamos ver o que o futuro me reserva. O que posso dizer é que um dia espero voltar a vestir esta camisola outra vez”, garantiu.

O “montanhista”

Igualmente histórico foi o que fez Rúben Guerreiro, que ficou com o prémio de rei da montanha no Giro. Nunca nenhum português o tinha feito em qualquer uma das grandes voltas (nem na montanha, nem em qualquer uma das classificações individuais), mas o português conquistou a camisola azul à nona etapa, graças a uma vitória com grande autoridade sobre o veterano espanhol Jonathan Castroviejo (Ineos). Perdeu-a na 15.ª etapa, mas recuperou-a na 17.ª e, no dia seguinte (a do Stelvio, onde João Almeida perdeu a “rosa”), garantiu matematicamente o título de rei da montanha – só teria de chegar ao fim do Giro, o que acabou por acontecer, terminando no 33.º lugar da geral.

“Já não tinha nada nas pernas”, disse o ciclista de 26 anos, campeão português de estrada (2017) após a sua estreia no Giro, ele que já tinha ficado em 17.º na Vuelta do ano passado. Guerreiro teve a liberdade para lutar pela vitória na etapa e fazer o que tinha a fazer para levar a “azul” até Milão, mas será ele um corredor de classificação geral no futuro? O ciclista do Montijo diz que sim: “Nunca se sabe. Ainda sou novo, vamos ver, um dia destes talvez possa usar a ‘rosa’, mas, agora, quero aproveitar o momento.”

Vencedor “acidental”

O “crono” final acabou por consagrar um vencedor que andava longe do lote de favoritos à partida para este Giro. Tao Geoghegan Hart seria, na melhor das hipóteses, a segunda opção da Ineos para a geral, mas a desistência de Geraint Thomas após a terceira etapa atirou o britânico de 25 anos para a liderança não oficial da equipa. Sem o vencedor do Tour 2018 para levar até Milão, a equipa anteriormente conhecida como Sky passaria a ter como objectivo ganhar todas as etapas que conseguisse (objectivo largamente cumprido, com sete triunfos), mas, à medida que os dias foram passando, a geral também passou a estar no horizonte.

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Tao Geoghegan Hart, vencedor do Giro 2020 EPA/LUCA ZENNARO

O britânico acabou por beneficiar da estratégia “canibal” da Sunweb, que libertou Jai Hindley para atacar o seu colega que estava na liderança, Wilco Kelderman. Depois de abater João Almeida no Stelvio, a equipa alemã tinha ficado com os dois primeiros da geral, e “abandonou” Kelderman para apostar em Hindley. À entrada para a última etapa, Hindley e Hart estavam empatados no primeiro lugar, sabendo-se que o britânico era muito superior ao australiano na corrida contra o relógio, o que viria a confirmar-se. Com a vitória na etapa a ir para o seu colega Filippo Ganna (a sua quarta neste Giro e a terceira em “cronos”), Hart fez o percurso em menos 37s que Hindley e conquistou a primeira grande volta da sua carreira, ele que tinha como melhor resultado um 20.º lugar na Vuelta 2019. Geoghegan Hart não usou a camisola rosa durante um único quilómetro que fosse no Giro, mas foi ele quem a levou para casa.

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