Coronel suspeito de falsificar guião da Prova Zero chamado a testemunhar no julgamento dos Comandos
Pedido da procuradora foi aceite pelos juízes que admitiram também a inquirição, nunca antes feita, de dois soldados da GNR que estiveram no campo onde morreu o primeiro dos dois instruendos. Sobre a reinquirição do médico-legista e do perito que inspeccionou o local, os juízes pediram à magistrada para “esclarecer e fundamentar a pretensão”. Advogados tinham-se oposto à reinquirição das testemunhas.
O coronel Filipe Dores Moreira vai ser inquirido como testemunha no julgamento dos 19 militares acusados de abuso de autoridade por ofensas à integridade física durante a Prova Zero do Curso 127. O oficial era o comandante do Regimento dos Comandos na Carregueira em Setembro de 2016 quando do primeiro dia da prova resultaram as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva, ambos de 20 anos, e o internamento de uma dezena de recrutas no Hospital das Forças Armadas.
A intervenção do coronel como testemunha, que foi admitida pelo colectivo de juízes, tinha sido pedida pela procuradora num requerimento em que também justificava a necessidade de o tribunal ouvir dois soldados da GNR pela primeira vez por só agora terem sido identificados como aqueles que foram chamados ao Campo de Tiro de Alcochete onde decorria a prova, antes de ser chamada a Polícia Judiciária Militar (PJM) – pedido igualmente aceite. A audição das três novas testemunhas está agendada para 28 de Outubro.
Relativamente às novas inquirições do elemento da PJM que realizou a inspecção ao local onde esteve o corpo de Hugo Abreu e do médico que realizou a autópsia deste instruendo, o colectivo pediu à procuradora para “esclarecer e fundamentar a pretensão”, devendo pronunciar-se na próxima semana.
Informado por telefone
O tribunal entendeu que a audição do coronel Dores Moreira poderia contribuir com “elementos relevantes para a descoberta da verdade” e que, neste caso, a existência de prazos para indicar testemunhas não podia sobrepor-se ao princípio da verdade material, “sob pena de subverter a justiça material”.
No despacho assinado pela juíza-presidente Helena Pinto, que está junto ao processo, tal é justificado porque “o coronel foi sendo informado dos acontecimentos ao longo da Prova Zero” e “deslocou-se ao local na noite dos acontecimentos”.
Dores Moreira está sob investigação num processo-crime iniciado em Junho de 2017 e que ainda decorre no Ministério Público do Tribunal da Relação por suposta falsificação do guião da Prova Zero entregue aos investigadores já depois da morte dos instruendos.
Quando optou por falar no julgamento dos Comandos, na qualidade de arguido, o tenente-coronel Mário Maia e responsável da Prova Zero, disse que ligou a Dores Moreira já depois das 14h desse fatídico dia informando que a instrução estava a correr bem, embora com muito calor; acrescentou que os dois concordaram em antecipar a instrução em uma hora na manhã do dia seguinte de modo a evitar as horas mais quentes do dia, mas que o calendário desse dia em que as temperaturas já atingiam os 40 graus Celsius não foi alterado.
Também lembrou que à data dos acontecimentos não existia o guião da prova mais tarde enviado pelo Exército para o Ministério Público durante a investigação às circunstâncias em que tinham ocorrido as mortes. E que o documento que serviu de referência para o curso 127 vinha de cursos anteriores e apenas mencionava a ingestão de três litros de água por dia.
Mário Maia reiterou, como consta da exposição junta ao processo pelo seu advogado, que isto aconteceu para isentar de qualquer responsabilidade o comando do regimento e o seu comandante e responsabilizar os instrutores e seus superiores no terreno pelo racionamento de água imposto e que viria a provocar desidratação em muitos recrutas e o golpe de calor que vitimou Hugo Abreu e Dylan da Silva.
Explicar “guião falso"
Alexandre Lafayette, advogado em representação de Mário Maia e do sargento Ricardo Rodrigues, instrutor do grupo de Hugo Abreu, não se opôs assim à inquirição de Dores Moreira; pretenderá ver esclarecido pelo ex-comandante do Regimento dos Comandos por que foi entregue “um guião da prova falso” ao Ministério Público e à Polícia Judiciária Militar que investigavam as circunstâncias em que tinham ocorrido as mortes.
A autópsia concluiu que os dois militares de 20 anos morreram de golpe de calor, desidratação extrema em contexto de temperaturas muito elevadas e intenso esforço físico decorrente da instrução.
Já sobre o requerimento da procuradora para a inquirição do médico-legista que realizou a autópsia ao corpo de Hugo Abreu, referindo que este tinha sofrido um ataque cardíaco, ao contrário do que acontecera com Dylan da Silva seis dias mais tarde, Alexandre Lafayette opôs-se por considerar este “um pedido inadequado para apurar seja o que for com interesse para os autos”. E questiona: “O que se pretende provar?”
É a autópsia que “apura a causa da morte” e o relatório não é apenas elaborado com elementos facultados pelo INEM e outros médicos (como referiu a procuradora), argumenta o advogado na sua oposição à reinquirição do médico-legista. A procuradora justificou a necessidade para que fosse “ponderada uma maior amplitude” na análise do relatório da autópsia que indica o golpe de calor como a causa da morte num caso e no outro.
“O golpe de calor foi a causa determinada da morte” em ambas as autópsias, insiste Lafayette, que acrescenta que os relatórios das autópsias de Hugo Abreu e Dylan da Silva são distintos porque “não existem duas autópsias iguais”.
Oposição da defesa
“O confronto entre o relatório de autópsia [de Hugo Abreu] que elaborou e o que foi elaborado após autópsia a Dylan da Silva permite concluir que, contrariamente a este, o primeiro não apresenta falência multiorgânica, designadamente falência hepática, tendo a morte do primeiro ocorrido na sequência de enfarte hemorrágico do miocárdio e hemorragia do endocárdio subjacente”, tinha invocado a procuradora citando os documentos do INML para a reinquirição desta testemunha.
Entre os advogados dos 19 arguidos, a maioria lamentou que o pedido da procuradora tenha sido feito já depois de “decorrida quase toda a prova da defesa” e considerou que o MP estaria assim a prolongar o inquérito que termina com o despacho de acusação. Também notando que o julgamento decorre há mais de dois anos, o advogado Paulo Sternberg defende, em nome do arguido, capitão-médico Miguel Domingues, que admitir que o MP produza e repita prova nesta fase constitui uma “violação das garantias da defesa”.
O advogado justifica que o princípio do contraditório e o pleno exercício do seu direito de defesa implicam que o arguido deve conhecer integralmente os factos que lhes são imputados pelo Estado, a prova indicada no despacho de acusação para sustentar a factualidade imputada, e tudo isto antes do início do julgamento.