O que nos diz a violência de uma Lei
A perversidade da justa decisão do TC é que milhares de pessoas já saíram da casa de onde foram inconstitucionalmente retiradas e não terão a disponibilidade para lutar pelos seus direitos.
Pode uma decisão justa de um tribunal ser também profundamente revoltante? De que serve a justiça de um caso se tantas outras pessoas foram violentadas no direito à habitação que, ironicamente, é hoje o último reduto da proteção contra a pandemia?
Vêm estas perguntas a propósito de uma importante decisão do Tribunal Constitucional (TC). Nessa decisão, que apenas é válida para aquele processo em concreto e que, por isso, não tem força obrigatória e geral, o TC julgou inconstitucional a parte do NRAU que estipulava que se os inquilinos não respondessem à carta do senhorio que impunha um aumento de renda e uma diminuição do tempo de contrato, então esse silêncio do inquilino valia como aceitação dos termos propostos pelo senhorio. O que retiramos da violência desta lei que, no caso concreto, desprotegeu uma pessoa com 82 anos e que vivia há mais de 60 naquela casa?
Não é demais recordar que esta Lei incidiu sobre população idosa e sobre uma legislação altamente técnica, com leis transitórias, cálculos de tempo e de rendimento que desprotegiam as pessoas. Tudo foi feito num juridiquês que a larguíssima maioria da população não conseguia traduzir e foi aplicado num país que praticamente não tem habitação pública para responder às necessidades das pessoas.
Podemos tirar uma primeira conclusão, sem meias palavras: tratou-se de expulsar as pessoas mais idosas de sua casa sabendo que não havia alternativa habitacional digna. Já conhecemos a justificação para estas leis e todas elas apontam a “dinamização do mercado da habitação” como fim que justificou os meios. A Lei dos Despejos foi o golpe final, porventura o mais violento, na ideia da habitação como direito fundamental, foi a confirmação de que o negócio é mais importante do que a vida das pessoas.
A perversidade da justa decisão do TC é que milhares de pessoas já saíram da casa de onde foram inconstitucionalmente retiradas e não terão a disponibilidade (financeira, mental, etc.) para lutar pelos seus direitos. Também por isto, compete ao poder político mudar o paradigma das políticas públicas para a habitação. Essa transformação terá de ser radical, não sendo por isso compaginável com medidas de pequenas melhorias legislativas, e tem de assumir que o quadro legislativo favorece o “nexo finança-habitação” (Ana Cordeiro Santos, 2019). Igualmente, tem de se assumir que também aqui, nas Leis da Habitação, existe uma parte mais forte e uma parte mais fraca e que compete à legislação diminuir estas desigualdades.
A Chão das Lutas tem recebido várias questões de inquilinos que são levados ao engano, casos de despejos numa altura em que a suspensão ainda está em vigor, pressões para se aceitar um novo contrato pior do que o anterior, entre outras pressões inaceitáveis que provam que os abusos se mantêm e que faz falta que a Lei de Bases da Habitação saia do papel.
Apesar de hoje celebrarmos uma decisão justa – que abre possibilidades de defesa reais para outros casos –, a nossa palavra tem de ser para os deserdados da Lei dos Despejos, aqueles e aquelas que olham para esta decisão com a revolta de quem perdeu a casa por uma Lei que empurrou os mais desfavorecidos para fora de sua casa sem sequer garantir que estes conheciam os seus direitos.
Nunca é demais recordar: a habitação é um direito fundamental. Comecemos por aqui.
Jurista e activista da Chão das Lutas
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico