Contra o fanatismo: a razão
O assassinato do professor Samuel Paty, porque ensinava a liberdade de expressão, é um crime monstruoso, manifestação extrema do obscurantismo que prolifera, do islamismo radical às correntes da supremacia branca, ao abrigo das redes sociais e do discurso de ódio.
Perante o horror do impensável, a emoção e a revolta são reações naturais, todavia, contra os inimigos da liberdade, a razão e o conhecimento são as armas mais eficazes.
Sobre Abdoullakh Anzorov, de 18 anos, autor do crime, sabemos que era de origem chechena, que cresceu em França e que postou um vídeo com imagens de Samuel Paty decapitado, tendo gritado: “Alá é grande!”
Desde o atentado no Metro de Paris, em 1995, ao do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, que se estuda o perfil dos autores de atos de terror (ler, por exemplo, Olivier Roy). Na maioria são jovens niilistas, desenraizados em França, reféns do mundo virtual da internet, do ódio e das teorias conspirativas, encontrando aí, no extremismo islamita da Al-Qaeda e Daesh uma razão de ser. Cresceram numa sociedade espetáculo, em que a única glória é aparecer nas redes sociais, mesmo depois de mortos; radicalizaram-se com as imagens de violência e morte no Médio Oriente, com as guerras da Síria e do Iraque, onde o direito à vida e a ilegitimidade da violência contra civis não são lei. A Tchetchénia é outra Síria, do espetáculo macabro da guerra de extermínio levada a cabo a mando de Putin.
O fanatismo medra também nas zonas de exclusão social, de ensino precário, lá onde a república não é sinónimo de igualdade e fraternidade.
Importa discutir como isolar os que pregam o fanatismo, combatendo, ao mesmo tempo, o racismo antimuçulmano e as organizações da extrema-direita que daquele se alimentam.
Como outros países, a França não encontrou ainda a resposta adequada e, perante a gravidade da situação sanitária e social, a tentação de desviar a atenção para as questões identitárias é enorme.
A resposta não está nas teorias do choque das civilizações, na identificação do terror com o Islão, nem, como temos visto, na prossecução de uma política que diminua as liberdades públicas, em nome da segurança, nem ainda em contrapor ao fanatismo religioso um dogmatismo laico, que em desrespeito pela liberdade exclui a religião do espaço público, estigmatiza as mulheres que cobrem os cabelos com um lenço e considera que o fanatismo é inerente à religião, nomeadamente a muçulmana. A maioria esmagadora dos 5 milhões de muçulmanos de França condena o fanatismo e os seus crimes, e são cidadãos da República, na diversidade das suas convicções.
É entrar no jogo do criminoso identificar o seu ato com uma religião, como o fez o Ministro de Interior, Darmadin, ao falar de terrorismo de “origem sunita”, estigmatizando o islão. Anunciar uma “guerra interna” é entrar numa perigosa escalada verbal, condenada ao fracasso, com Marine Le Pen. Não foi esse o discurso que elegeu Macron e o tornou a esperança do liberalismo político na Europa.
É também importante que os media não se deixem inebriar pelos índices de audiências, fomentados pelo espetáculo da violência verbal da extrema-direita, como Éric Zemmour, em França, condenado por defender a descriminação, mas que continua a destilar o ódio racial pela televisão.
As medidas a tomar devem ter um valor universal e ser contra todas as formas de incitação ao ódio. Importa, assim, além de aplicar a lei contra o discurso de ódio aos islamitas radicais, aplicá-la também ao discurso de ódio antimuçulmano e antissemita da extrema-direita. Esta questão torna-se ainda mais importante perante a consciência de que estamos a entrar na terceira vaga do terrorismo: a da extrema-direita.
A primeira vaga de atos de terror foi a da extrema-esquerda (brigadas vermelhas ou Setembro Negro), nos anos 70 e 80, seguida pela dos islamitas radicais, nos anos 90 e na primeira década deste século, que parece agora ter perdido capacidade de organização e os atos serem de fanáticos solitários.
Hoje, a maioria dos atos de terror são perpetrados por movimentos supremacistas brancos, que ganharam um novo fôlego com a chegada de Trump à Casa Branca, como é o caso de 90% dos atos cometidos nos Estados Unidos em 2018 e 2019, na maioria contra negros, muçulmanos e judeus.
A extrema-direita e o islamismo radical alimentam-se e inspiram-se mutuamente. Um membro da Atomwaffen Division (AWD), rede terrorista neonazi, ativa nos Estados Unidos e na Europa, declarou, segundo um relatório do instituto americano CSIS, que “a cultura de martírio e insurreição em grupos como os talibãs e o Daesh deve ser admirada e reproduzida.”
Para vencer a radicalização é preciso unir os cidadãos, independentemente da sua religião ou da falta dela. A laicidade implica tolerância, o caminho para prevenir as guerras de religião, como ensina Voltaire.
Ao decapitar o professor Paty, Abdoullakh Anzorov ambicionava decapitar a França dos seus muçulmanos, vitória que os fanáticos não podem ter.