E ao fim de anos, o projecto vai avançar: Matadouro quer mudar o Porto oriental a partir de 2023
Rui Moreira assinou esta quarta-feira o contrato com a Mota-Engil e teve o apoio de António Costa, que recordou “luta difícil” com o Tribunal de Contas para aprovar o projecto. Obra arranca em Setembro do próximo ano.
Era “um dia bom para o Porto” e o sorriso de Rui Moreira, mesmo por detrás da máscara, não escondia a satisfação por finalmente assinar o “auto de consignação” com a empresa Mota-Engil, que vai executar a empreitada de reconversão do antigo Matadouro Industrial da cidade em “algo há muito imaginado e pensado”. O presidente da Câmara do Porto convidou António Costa para a cerimónia, feita no edifício construído no início do século XX e há mais de duas décadas desactivado, e contou com um primeiro-ministro aliado, não só na alegria com o momento, mas também nas críticas ao Tribunal de Contas (TdC), que chegou a reprovar o projecto e, depois disso, demorou mais de um ano a dar a luz verde definitiva.
Rui Moreira furou o discurso oficial para agradecer o “empenho pessoal” de António Costa e também de Marcelo Rebelo de Sousa, que visitou o espaço em 2019, na concretização deste projecto que quer transformar a zona oriental da cidade. Admitindo a importância da “transparência” e escrutínio do poder político, o autarca lamentou o arrastar deste processo: “Numa altura em que a Europa está a tomar medidas para compensar os efeitos da pandemia terrível que nos atinge, é absolutamente impensável que projectos como este possam voltar a estar anos e anos na gaveta, para no fim se concluir que afinal estava tudo bem, mas houve alguém que por acaso desconfiou. Desconfiar da classe política é destruir a política, é destruir a economia, a democracia e a liberdade”, afirmou.
O primeiro-ministro não deixou de dar o recado ao TdC pela “demora burocrática” e fechou o discurso falando directamente para Moreira: “Sei bem que a luta foi difícil, que tivemos de nos apoiar nos desabafos mútuos perante as dificuldades que iam surgindo, tivemos que puxar pela imaginação legal para ultrapassar e vencer as barreiras que iam surgindo”, disse. “Levamos mais de quatro anos, mas felizmente levaremos muito menos do que isso para poder inaugurar esta obra”.
A Mota-Engil já tomou posse do edifício e irá agora elaborar o projecto de execução. Em Setembro de 2021 a empreitada arranca, com um prazo previsto de dois anos: em 2023 o “game changer" de Moreira para Campanhã estará pronto. O investimento de 40 milhões de euros dá à construtora portuense a gestão do espaço por 30 anos, altura em que o edifício volta a ser municipal.
No antigo Matadouro, sublinhou Rui Moreira, vai nascer um “projecto multidimensional” onde se junta “cultura, economia e coesão social”. Com a assinatura do japonês Kengo Kuma, que o desenhou em parceria com os portuenses do atelier OODA, o equipamento quer ter “dimensão metropolitana” e aproveitar a geografia onde se insere, com “facilidade de acesso e proximidade ao centro do Porto e a grandes equipamentos urbanos, como o Estádio do Dragão ou o Terminal Intermodal de Campanhã”.
Junto ao ex-complexo industrial, a Câmara do Porto quer ainda reestruturar a antiga fábrica Invencível e a antiga área de recolha da STCP, apontou o autarca, algo que permitirá “uma nova articulação com a Rua de S. Roque da Lameira e com uma nova ligação à Praça da Corujeira”, já com projecto aprovado.
No futuro matadouro, a autarquia ambiciona desenvolver actividade económica, criando emprego, promover projectos culturais e acolher espaços de dinamização social ligados ao tecido social da zona oriental do Porto. Dos cerca de 26 mil metros quadrados, oito mil serão entregues directamente ao município: aí haverá, por exemplo, espaço para depósito de obras de arte e extensões da Galeria Municipal e do Museu da Cidade.
A “coesão territorial” daquela zona deprimida da urbe é também um objectivo. O traçado do arquitecto que desenhou o Estádio Olímpico de Tóquio prevê uma cobertura que ligará o edifício antigo a um outro, a ser construído de raiz, e terá uma passagem pedonal por cima da Via de Cintura Interna, com ligação ao Estádio do Dragão. “Aqui vai nascer a rua do Porto, onde a população poderá facilmente aceder aos meios de transporte do terminal do dragão, através de uma ponte, ou circular por projectos de cariz empresarial, social, cultural, galerias de arte e ateliers de artes e ofícios tradicionais”, destacou Moreira.
Empreendedorismo e “zonas livres tecnológicas"
O primeiro-ministro aproveitou o projecto portuense para sublinhar a importância do empreendedorismo para o país, particularmente no momento de combate à pandemia e na crise por ela provocada. Desde 2016, congratulou-se, foram criadas 2500 startups no país, geradoras de 25 mil empregos, um crescimento de 67% face àquilo que acontecia há quatro anos. Até ao final deste ano, o Governo quer aprovar o quadro legal para a “criação de zonas livres tecnológicas, de forma a poder criar, em parceria com os municípios, em zonas adequadas, espaços de experimentação tecnológica”.
Aquela não era a primeira vez do governante no edifício do Porto oriental. Em 2016, recordou, já ali estivera precisamente para conhecer os primeiros esboços do projecto que prometia ser um “hub regenerador do território de Campanhã, de produção da actividade cultural e um espaço importante de empreendedorismo e inovação”.
Enquanto ouvia Rui Moreira falar, o primeiro-ministro teve tempo para reparar nas várias mensagens desenhadas nas vigas do edifício: cada uma delas, espelhava bem aquilo “que se sente perante a falta de vida destes espaços abandonados”, disse António Costa, citando a sua preferida - “Quantas ruínas sejam para viver ou trabalhar aqui se contam e adonde ficam” - e felicitando o município do Porto pela “missão extraordinária” de “devolver à vida” espaços como o Matadouro.
Avanços e recuos de uma longa história
A reconversão do antigo Matadouro começou há muito a ser pensada e estava mesmo no programa eleitoral com o qual Rui Moreira concorreu pela primeira vez à Câmara do Porto, em 2013. Mas os planos nem sempre foram aqueles que agora se concretizarão. Ainda em 2016, já o atelier portuense Garcia & Albuquerque tinha o projecto de reabilitação a velocidade cruzeiro e uma apresentação pomposa em Milão recebera rasgados elogios, o arquitecto Jorge Garcia Pereira foi informado pela autarquia que os planos haviam mudado: afinal, o seu trabalho não iria para a frente e ia ser lançado um concurso público para que o investimento e a exploração do espaço fosse privado.
Em 2018, já com o arquitecto japonês Kengo Kuma em cena, o executivo de Rui Moreira anunciava que a obra que ia transformar a zona oriental da cidade estaria pronta em 2021. Nessa altura, o orçamento já não eram os 10 milhões iniciais, mas antes 40 milhões, assumidos por quem vencesse o concurso público. E ainda ninguém adivinhava a saga do TdC que se seguiria – Rui Moreira chegou mesmo a dizer que tinha dúvidas sobre a necessidade de aprovação por parte desta entidade.
Em Fevereiro de 2019, o balde de água fria caía na Câmara do Porto. O Tribunal de Contas chumbava a obra de reconversão do edifício construído nas primeiras décadas do século XX e as críticas, explanadas num relatório com mais de 100 páginas, eram ferozes. Entre as “ilegalidades” apontadas, o tribunal argumentava que o projecto configurava uma Parceria Público Privada, e não uma concessão, havia violação das regras do jogo e ausência dos princípios de lealdade, concorrência e transparência.
O autarca do Porto não esteve, como é habitual, para meias palavras. A reprovação do seu game changer era uma decisão “ideológica”, sem “fundamento legal ou constitucional”, um “exacerbar de competências” e uma “intromissão inadmissível que põe em causa a soberania dos municípios”.
O processo ficaria em banho-maria e andaria entre Lisboa e Porto, com dúvidas do TdC e argumentação da autarquia. E a lamentação de Moreira repeter-se-ia várias vezes, ora com acusações de “veto político”, ora em parceria com Fernando Medina, quando os dois autarcas se juntaram para pedir a Marcelo Rebelo de Sousa que analisasse o “veto de gaveta” do tribunal ao projecto do Porto e a outros dois em Lisboa. A tão esperada luz verde veio em plena pandemia, em Abril deste ano, 14 meses depois do chumbo.