Tribunal arbitral para lesados com produtos financeiros chega ao Parlamento
Petição pública, aceite no Parlamento, pede mecanismo de resolução de conflitos extrajudicial para investidores não qualificados, como os lesados do BPN, do BES ou da PT. Solução terá de ter carácter obrigatório, e não voluntário, como o que existe actualmente.
Nos últimos anos, o número de particulares que subscreveram produtos financeiros de risco e que acabaram por sofrer perdas elevadas ascendem a centenas de milhares. Em comum, os lesados do BPN, do BES, da PT, do Banif e outros alegam falta de informação ou mesmo informação enganosa, mas, mesmo nos casos em que essas práticas estão documentada, boa parte dos particulares não consegue recuperar a totalidade ou parte das suas poupanças.
A falta de mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos entre investidores não qualificados e instituições financeiras tem dificultado as possibilidades de recuperação de poupanças, na medida em que, na maioria dos casos, deixa como única alternativa o recurso aos tribunais comuns, uma via com custos muito elevados, morosa, e entregue a juízes normalmente sem formação especializada em produtos financeiros complexos.
Tem sido essa a experiência dos associados da ALOPE - Associação de Lesados em Obrigações e Produtos Estruturados, que tem tentado, sem sucesso, a recuperação total das suas aplicações em obrigações e outros produtos financeiros complexos (Credit Linked Notes), associados a dívida da Portugal Telecom. E que, depois da tentativa falhada de conciliação voluntária, na esfera da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, acabaram por lançar uma petição pública para pôr em cima da mesa, neste caso no Parlamento, a criação de uma espécie de “via verde” para conflitos que envolvam clientes particulares, não qualificados (sem conhecimentos que permitam avaliar as características ou risco dos produtos) e as instituições financeiras.
A iniciativa da ALOPE encontra-se em apreciação na Comissão de Orçamento e Finanças, e pretende que as entidades financeiras passem a ser obrigadas a aceitar a mediação neste tipo de conflitos, que dispararam com a resolução e liquidação de vários bancos nacionais, sendo que nem todos, pela sua complexidade, poderiam encaixar nesse mecanismo.
A resolução extrajudicial de conflitos, por via da conciliação, já existe, estando, no caso de certos produtos financeiros, prevista no Código de Valores Mobiliários, mas é de adesão voluntária. Ou seja, as entidades que os criaram ou venderam só participam se quiserem. E têm sido muitas as situações em que, mesmo com a intervenção da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), como aconteceu com os lesados da PT, o mecanismo podia, mas não foi desencadeado, com prejuízo para os particulares.
Assim, e em contraponto à adesão voluntária, os mais de quatro mil peticionários pedem a criação, em Portugal, de um centro de arbitragem ou tribunal arbitral especializado (como existe para alguns sectores comerciais), com carácter obrigatório e um corpo de arbitragem próprio e independente, para apreciar os conflitos de carácter financeiro que envolvam investidores não qualificados.
Nos produtos financeiros, até já foi aberto um precedente de arbitragem obrigatória para litígios entre particulares e instituições bancárias, mas a uma escala muito reduzida. Desde 2018, que os pequenos conflitos relacionados com produtos de crédito ou meios de pagamento, até cinco mil euros, estão abrangidos pelo mecanismo. Também nos pequenos conflitos de consumo, a arbitragem obrigatória que existia para fornecimentos de bens e serviços essenciais (água, luz e outros) foi alargada a todas os conflitos de consumo, mas o valor em litígio também não pode exceder cinco mil euros.
A petição, que já tem relator nomeado, o deputado Carlos Silva, do PSD, pede a criação mecanismo global, para os conflitos que possam ser decididos por esta via, e não serão todos, certamente. Pede também a criação de um provedor do investidor e o reforço de competências da CMVM.
Tribunal arbitral para lesados da PT
Mas tendo em conta que aqueles pedidos podem “demorar algum tempo a operacionalizar”, os lesados da PT pedem a criação imediata de um tribunal arbitral ad hoc para apreciação do litígio que os opõe a um conjunto alargado de bancos a operar no mercado nacionais. Em causa estão cerca de 700 investidores particulares que alegam ter sido “vítimas de uma actuação irresponsável por parte do sistema financeiro português, através das suas entidades bancárias, que lhes venderam produtos financeiros complexos com elevado grau de risco associado, sem transmitir informação suficiente para a tomada de uma decisão esclarecida”.
Nuno da Silva Vieira, jurista que apoiou a ALOPE no lançamento da petição, disse ao PÚBLICO que “a admissão da petição é um momento especial para os investidores que foram vítimas – directa e indirectamente – do colapso da Portugal Telecom”.
O sócio da sociedade Antas da Cunha ECIJA, que conhece de perto outros casos de lesados em aplicações financeiras, destaca que a petição “luta pela mediação obrigatória e por um contrabalançar de pesos, no sentido do equilíbrio entre investidores e intermediários financeiros”. Lembrando que “as que pessoas não compreendem como funciona o sistema financeiro e muitas vezes derrapam nas suas armadilhas”, e que, “por culpa de tribunais pouco especializados, incapazes de se socorrerem da equidade, e de uma mediação voluntária, com vantagem para o prevaricador que acaba por não querer participar, o cidadão fica abandonado e sem a sua propriedade”.
O jurista destaca ainda a importância da defesa da propriedade: “Cidadãos bem formados vão usar o seu dinheiro de forma activa na economia, mas apenas o farão se reconhecerem que a sua propriedade está salvaguardada”, destaca.
No âmbito da admissão da petição, será ouvida ALOPE, e deverá ser promovida a audição de algumas entidades, nomeadamente o Ministério das Finanças, a CMVM, o Banco de Portugal e a Ordem dos Advogados.
Notícia corrigida na identificação de um dos bancos nacionais onde ocorreram perdas para clientes particulares. Trata-se do antigo BPN, e não do grupo francês BNP, como por lapso se referia na versão inicial.