A resposta da ciência à pandemia
A comunicação de ciência tem de refletir sobre como comunica, de modo a não criar expetativas irrealistas ao promover a (excelente) ciência que se faz.
No início da atual situação de pandemia foi notória a mobilização da comunidade científica, quer na produção, divulgação e descodificação de informação, quer no fabrico de materiais e realização de testes numa altura de alguma falta de resposta do sistema, embora sobre este último aspeto, e de como foi organizado e financiado (nomeadamente sobre diferenças entre público e privado), algo houvesse a dizer, depois de dissipado o entusiasmo coletivo inicial. No entanto, mantém-se uma crítica recorrente: tudo muito bem, bom esforço (e finalmente percebemos para que servem...), mas “vocês” ainda não resolveram “isto”.
Peço desculpa por discordar, mas, após algum período de adaptação, que poderia ter sido reduzido se se tivesse dado logo mais atenção ao que se passava na China, “isto” estava potencialmente resolvido desde o início... “Bastava” testar em massa, implementar logo medidas sanitárias rigorosas, isolar e (se preciso) confinar até quando fosse necessário, usando mecanismos empregues no passado (até longínquo) em situações similares, em relação às quais até temos hoje muitas vantagens científicas, desde testes moleculares rápidos, ferramentas digitais de monitorização de potenciais infetados, ou não achar que as pessoas contaminadas estejam “possuídas”. É uma solução chata e nada agradável? Sem dúvida, mas também era a melhor resposta que a ciência tinha a dar, e não lhe cabe menorizar problemas ou inventar soluções milagrosas inexistentes (infelizmente há quem o faça).
O problema é que ninguém gosta desta “receita”, pelos mais conhecidos e justificados motivos (económicos, sociais, psicológicos; ou porque há direitos, liberdades e garantias, e “não somos ovelhas”), e quanto mais tempo a têm de aplicar sem poderem voltar ao “normal”, mais irritados ficam, e mais propensos a teorias da conspiração, ou a relativizar e mudar de opinião, alterando o peso de valores ou argumentos. Para mais com um vírus que não causa necessariamente sintomas óbvios, únicos e visíveis; ou que mata poucas pessoas mais ativas e com opiniões a partilhar (se assim não fosse a história seria outra).
Por outro lado, acrescentar ser possível que o SARS-CoV-2 deixe sequelas a longo prazo em pessoas assintomáticas que “não tiveram nada” não ajuda por dois motivos: apesar de já haver algumas evidências nesse sentido, ainda não temos dados fidedignos (ainda não passou tempo suficiente); e, sobretudo, não temos grande vocação para pensar ou viver no longo prazo, nem como indivíduos nem enquanto espécie. Ou seja: era preciso que as provas fossem mesmo fortes, e mesmo assim não sei, somos muito bons a encontrar justificações que nos exemptem. Embora haja outros interesses em jogo, creio que é isso que justifica que decisores e fazedores de opinião tenham lenta, mas inexoravelmente, mudado a agulha do “é essencial salvar todas as vidas possíveis” de há uns meses, para algo que se pode resumir como “mais valia termos feito como a Suécia, e assumido as consequências, ia dar ao mesmo”.
O que se passa neste caso é mais ou menos equivalente a ir a uma primeira consulta médica por problemas relacionados com fígado gordo, obesidade, ou diabetes de tipo II. É certo que pode haver alguma medicação envolvida, mas a resposta mais segura, quase inevitável, de um profissional de saúde neste caso será uma receita que inclui dieta e exercício, ou sugerir que o doente beba menos bebidas alcoólicas. Quando o que o dito doente quereria não era nada disso, porque, francamente, é uma chatice. Talvez preferisse, por exemplo, resolver o problema mediante fármacos que ativem mitocôndrias para metabolizar etanol mais depressa, uma transdiferenciação por reprogramação direta que transformasse gordura branca em gordura castanha/bege de modo a esta se autoconsumir sozinha sem o mínimo de esforço, libertando energia na forma de calor (de forma controlada, para não “cozer” o indivíduo por dentro...), ou uma injeção de células estaminais para regenerar o fígado entre almoçaradas. Tudo isto são estratégias reais em diferentes graus de desenvolvimento, mas ainda não disponíveis. No entanto, aqui como noutros casos, a ciência e a medicina têm soluções apoiadas em milhares de ensaios, que comprovadamente funcionam. Podem é não corresponder ao que queremos na prática, mas aí a culpa é de quem?
Quer isto dizer que a ciência se deve resignar ao que existe? Nem pouco mais ou menos, se assim fosse não era ciência. No século passado ensaios clínicos com retrovirais anti-HIV eliminaram, por pressão social, a necessidade de existir um grupo que recebia placebo (um “medicamento” sem princípio ativo, que nunca iria funcionar), algo que era julgado essencial para boas práticas e para controlar o ensaio. Só que condenava os doentes que o recebiam com legítima esperança a, no fundo, um simulacro de terapêutica que não era eticamente aceitável. E qualquer pessoa que perceba o modo lento e controlado como habitualmente se desenvolvem e aprovam medicamentos e vacinas (incluindo interesses económicos e políticos que não vale a pena fingir que não existem) sabe que na atual situação pandémica os prazos foram todos encurtados e se estão a queimar etapas, acelerando o mais possível. Porque se espera que o resultado final seja recompensador ao providenciar a solução que, de facto, as pessoas querem, e cujos efeitos (em termos de “regresso à normalidade”) conseguem facilmente antever no curto prazo. Isto pese embora algumas questões curiosas, como haver indivíduos antivacinas que apoiam todos estes esforços, abrindo uma exceção ao seu habitual posicionamento; bem como outros assumidamente pró-vacinas que poderão não estar nos primeiros lugares da fila neste caso, devido ao modo como a investigação está a ser conduzida, ou dependendo das caraterísticas do produto final (eficácia, duração, efeitos secundários, etc.).
A terminar há ainda duas outras questões relevantes que vale a pena debater. Por um lado, a comunicação de ciência tem de refletir sobre como comunica, de modo a não criar expectativas irrealistas ao promover a (excelente) ciência que se faz. Não podemos, como diz um colega, dar a ideia que “curamos o cancro ou Alzheimer todas as semanas”, quando falamos de pequenos passos rumo a objetivos se calhar bem mais modestos, mas nem por isso menos importantes. Noutra perspetiva, e independentemente da importância pontual de tudo isto (que é inegável), já pensaram no que conseguiríamos fazer se os mesmos sentimentos de urgência e de missão coletiva (nem sequer tanto os meios) fossem aplicados a outros problemas que deveríamos estar empenhados em resolver, nas diversas áreas em que nos movimentamos? Temo, no entanto, que se trate de uma pergunta retórica.