Partido Democrata cola à juíza Barrett o rótulo de ameaça ao Obamacare
Processo de confirmação para o Supremo Tribunal começou esta segunda-feira no Senado, com o Partido Democrata sem votos suficientes para travar a escolha do Presidente Donald Trump e do Partido Republicano.
De mãos atadas para impedir a entrada imediata da juíza conservadora Amy Coney Barrett no Supremo Tribunal dos EUA, o Partido Democrata tenta levar os eleitores a pressionarem o Partido Republicano a adiar a decisão final para Janeiro de 2021, depois das eleições presidenciais. Esta segunda-feira, no primeiro dia das audições com vista à confirmação da juíza, os senadores democratas dedicaram o seu tempo a descrever Barrett como um instrumento do Presidente Trump para cortar o acesso de milhões de norte-americanos a cuidados de saúde essenciais – numa altura em que a pandemia de covid-19 já matou mais de 215 mil pessoas no país.
No primeiro dia das audições na Comissão de Assuntos Judiciais do Senado, o senador Sheldon Whitehouse, do Partido Democrata, comparou Barrett a “um torpedo apontado à ACA” – numa referência às iniciais, em inglês, do Affordable Care Act, a lei que alargou o acesso aos seguros de saúde a mais de 20 milhões de norte-americanos, também conhecida como Obamacare.
“Trump nem sequer consegue manter a Casa Branca em segurança”, disse Whitehouse, referindo-se ao surto de covid-19 que surgiu após a cerimónia de nomeação da juíza, a 26 de Setembro, nos jardins da residência oficial do Presidente dos EUA. Segundo o senador, se o Presidente dos EUA não consegue proteger a Casa Branca da pandemia, então o Senado não pode confirmar a nomeação de Barrett, uma juíza que já se manifestou contra a constitucionalidade da lei do sistema de saúde da era Obama.
O argumento é simples e destina-se, principalmente, aos republicanos para quem o Obamacare é hoje a única porta aberta para um seguro de saúde. Se uma parte desse eleitorado sentir que a lei pode vir a ser derrubada no Supremo assim que Barrett lá chegar, é possível que os senadores republicanos venham a ser pressionados para votarem contra a nomeação – pelo menos os que têm o lugar em risco nas eleições de 3 de Novembro e que precisam de recuperar terreno nas sondagens.
Energia conservadora
A pouco mais de três semanas das eleições, o Partido Republicano espera, pelo seu lado, transformar o processo de confirmação no grande assunto de campanha, por razões pessoais, relegando para segundo plano as consequências da pandemia. Dessa forma, o partido espera acordar a parte do eleitorado de Trump que parece ter adormecido nas últimas semanas.
Desde a sua prestação no primeiro debate com Joe Biden, a 30 de Setembro, Trump deu um trambolhão nas sondagens e ainda não recuperou. Ao retratar as críticas do Partido Democrata à juíza Barrett como um ataque contra os conservadores, e em especial contra os católicos, o Partido Republicano espera que a sua base se entusiasme tanto como se entusiasmou durante o processo do juiz Brett Kavanaugh, em 2018, e que isso sirva também para melhorar as hipóteses de reeleição de Trump.
O esforço do Partido Democrata para convencer os eleitores a pressionarem o Partido Republicano parece estar destinado ao fracasso, por causa da maioria republicana de 53-47 no Senado.
Mesmo depois de as senadoras Susan Collins e Lisa Murkowski terem dito que não concordam com uma confirmação antes das eleições, é preciso que mais dois republicanos se juntem a elas (num empate 50-50, quem decide é o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, que é o presidente do Senado por inerência). E um dos senadores em que o Partido Democrata mais apostava para frustrar as intenções republicanas, Mitt Romney, já anunciou que concorda com a confirmação antes das eleições.
Se o calendário não se alterar, a Comissão de Justiça do Senado vai ouvir a juíza até quinta-feira e anunciará a sua decisão a 22 de Outubro. Com 12 senadores republicanos contra dez democratas na comissão, espera-se que a maioria recomende a confirmação da juíza ao Senado sem grandes problemas.
O último passo é a votação por todos os 100 senadores, que deverá acontecer na semana de 26 de Outubro, a poucos dias das eleições. Também neste caso a maioria do Partido Republicano deverá ser suficiente para confirmar a nomeação, já que são precisos apenas 51 votos.
Alargar o Supremo?
Para o Partido Democrata, a nomeação de Barrett representa duas enormes dores de cabeça – uma a longo prazo, com a entrada de uma juíza de apenas 48 anos para um cargo vitalício no Supremo, onde a ala conservadora terá uma maioria de 6-3; e outra a curto prazo, com a iminência de uma decisão importante no tribunal sobre o futuro do Obamacare.
A primeira dor de cabeça pode surgir na noite das eleições.
“Se os democratas conquistarem o Senado e a Casa Branca, e se mantiverem a maioria na Câmara dos Representantes, será relativamente simples aumentar o número de juízes no Supremo Tribunal [de nove para 13], já que bastam maiorias simples e o apoio da Casa Branca”, disse ao PÚBLICO Lawrence Douglas, professor de Direito Constitucional na Universidade de Amherst, no estado do Massachussetts. “Mas, se for essa a decisão, mesmo que seja justificada, será profundamente controversa”, alertou.
A segunda dor de cabeça chega no dia 10 de Novembro, apenas sete dias depois das eleições, quando o Supremo apreciar um caso que pode ser o início da derrocada da emblemática lei da era Obama, se a maioria dos juízes concordar com os queixosos.
No processo em causa, o estado do Texas, com o apoio da Casa Branca, tenta que o Supremo declare a inconstitucionalidade do Obamacare. Segundo os queixosos, a obrigação legal de que todos os cidadãos tenham um seguro de saúde (o principal pilar do Obamacare) passou a ser inconstitucional quando o Congresso aprovou, em 2017, o fim das penalizações a quem viola essa obrigação. Se o Supremo aceitar o argumento, o Partido Republicano e a Casa Branca terão a vitória que não conseguiram no Congresso em 2017, quando três senadores republicanos, incluindo John McCain, votaram contra o seu partido e o Presidente Trump.
Mas está longe de ser um facto consumado que o Supremo irá concordar com os argumentos contra a lei da era Obama, mesmo que a escolha de Barrett faça tudo menos sossegar o Partido Democrata.
“Isso não é claro”, disse Lawrence Douglas. “Mesmo que ela apoie a inconstitucionalidade, é possível que o juiz-presidente, John G. Roberts, e o juiz Kavanaugh se juntem aos juízes progressistas numa abordagem mais moderada, que pode manter a lei em vigor mesmo que caia a obrigatoriedade [de se ter um seguro de saúde].”