Ana Gomes: “Vários membros do Governo já disseram que me apoiarão”
Ana Gomes diz ter falado com governantes que, a seu tempo, lhe vão expressar confiança na sua candidatura. Candidata socialista concordaria com um mandato presidencial mais longo, sem hipótese de reeleição.
Ana Gomes assegura ter o apoio de vários ministros do Governo à sua candidatura à Presidência da República e não poupa críticas às alterações que o executivo quer fazer às regras da contratação pública e à não continuidade do presidente do Tribunal de Contas. Defende uma alteração da Constituição que passe os dois mandatos de cinco anos que um Presidente da República pode cumprir para apenas um de sete anos. Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do PÚBLICO, a diplomata diz que esta alteração evitaria que o Presidente estivesse no primeiro mandato “a pensar que vai ter de ser reeleito e a condicionar-se, mesmo que inconscientemente, pela necessidade de ser reeleito”.
A comissão nacional do PS vai discutir ainda este mês as presidenciais. Já está resignada à ideia de que o seu partido não vai apoiar a sua candidatura ou ainda espera um sinal?
Não se trata de me resignar. Esperei durante algum tempo que o partido se definisse. Não o tendo feito, decidi avançar e agora não quero de maneira nenhuma interferir numa decisão do PS. Tenho confiança que as pessoas, os militantes socialistas, sabem pensar pela sua própria cabeça. Acho positivo que haja uma reunião marcada para o dia 24 de Outubro [entretanto adiada para dia 31 deste mês] e aguardo serenamente aquilo que lá for decidido.
Na apresentação da sua candidatura afirmou que o PS tem mecanismos para apoiar candidatos. Considera que as eleições primárias podiam ser um bom mecanismo para escolher quem apoiar nestas presidenciais?
Não me parece que isso fosse necessário. Reunir os diversos órgãos do partido para escolher quem apoiar nas próximas eleições presidenciais pode fazer-se. Tem é de ser os órgãos que existem [a decidir], não pode ser uma cabeça. E isso está de acordo com o que o ministro [das Infra-Estruturas e da Habitação] Pedro Nuno Santos recentemente afirmou: não é nenhum membro do Governo, nem nenhum militante sozinho, por mais responsável que seja, designadamente o secretário-geral, que pode prescindir de ouvir os órgãos do partido.
Pedro Nuno Santos teve essa reacção depois de declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que fez um grande elogio a Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu que é preciso uma voz serena na Presidência da República e que essa voz não era a de Ana Gomes. Que resposta lhe merecem declarações de militantes do PS que dão de si esta imagem de extremista?
Todos os militantes, a começar por Augusto Santos Silva, têm o direito de ter a sua opinião a meu respeito [risos]. Não aceito é a imagem de extremista. Aceito que digam que em algumas questões sou radical. Sou radical contra os compadrios, contra as clientelas, contra a corrupção, para me valer da expressão do Presidente da República. Se isso leva algumas pessoas a consideram-me extremista, o problema é delas.
E há também quem a acuse de populismo...
É a mesma reacção: se populismo é ouvir o que pensam as pessoas, então serei populista. Agora não sou populista no sentido de quem quer dividir o país entre eles e nós, os políticos e nós o resto do povo. Eu sou uma política, assumo-me como tal. Não sou é por aqueles que querem destruir as instituições da democracia. Eu quero reformar, regenerar as instituições da democracia e não posso abstrair-me do facto de que boa parte da subida dos perigosos populistas, designadamente de extrema-direita, com desígnios de destruir a democracia, só acontece porque há muitos dentro do sistema democrático que preferem tapar os olhos.
Já falou com o secretário-geral do PS depois de ter apresentado a sua candidatura?
Não falo com o secretário-geral do PS para aí... há dois anos, desde que ele apareceu no Parlamento Europeu [PE], cerca de um mês depois de eu lhe ter enviado uma carta a dizer que não queria voltar a ser candidata ao PE e agradecendo-lhe a grande oportunidade que o PS me tinha dado de servir o país e os interesses nacionais no PE.
E com o dirigente do PS Pedro Nuno Santos já falou, entretanto? Ele quase já deu o apoio à sua candidatura, ainda que indirectamente.
Isso é uma interpretação que está a fazer...
Foi quase, quase, quase.
Tenho falado com vários membros do Governo...
Para além de Pedro Nuno Santos? Quais?
Tenho falado com vários sobre várias questões que vou tratando.
E dão-lhe o seu apoio?
Tenho vários membros do Governo que já me disseram que me apoiarão. Naturalmente, democraticamente estão à espera que o PS tome uma decisão sobre esta questão, não se revendo nas indicações que foram dadas naquela triste cena da Autoeuropa.
Gostava que, por exemplo, o ministro Pedro Nuno Santos aparecesse na sua campanha?
Neste momento essa questão não se coloca, mas naturalmente que eu terei todo o orgulho em que certos dirigentes socialistas dêem apoio à minha campanha. Também devo dizer que há outros que preferia que não aparecessem [risos].
Não quer dizem quem?
Não vale a pena, eles sabem quem são [risos]. Deixe-me ser diplomata.
Arrancou com a sua pré-campanha na segunda-feira [5 de Outubro] com um colóquio em Lisboa que agora vai estender a vários pontos do país. A estrutura da campanha já está montada?
Tem-se ido montando, porque quando anunciei [a candidatura] não tinha rigorosamente nada. Devo dizer que tem sido complicado. Para já é preciso conhecer as leis que regulam o funcionamento de uma campanha, designadamente para questões financeiras. (…) A questão do financiamento também é importante, porque eu quis inovar no sentido de demonstrar aquilo que disse: que aceito todos os apoios do campo democrático, mas não aceito compromissos e, portanto, também não aceito financiamentos que não sejam absolutamente transparentes e com um tecto de 100 euros [por pessoa].
Embora a lei diga que podia receber donativos individuais até pouco mais de 26 mil euros...
Não quero seguir a lei nesse aspecto, embora a lei não proíba que se coloque um tecto de 100 euros.
Não vai precisar de pedir empréstimos à banca?
Não. De certeza absoluta que não vamos pedir empréstimos à banca.
Mas já fez uma estimativa de quando vai custar a campanha?
Esse é um dos problemas, justamente fazer uma estimativa de orçamento, porque, de resto, é da lei que se tem de entregar no início da campanha à autoridade fiscalizadora das contas [quanto se vai gastar na campanha]. O esquema está feito, no fundo, para facilitar a vida aos partidos políticos que já existem, porque já têm tudo isso.
Em termos de mobilização, o PS pode ou não travar a mobilização dos militantes e das distritais pela sua campanha? De resto, foi o aconteceu um pouco na campanha de Maria de Belém, em 2016, em que as acções de campanha foram um fracasso.
Não acredito nisso. Tenho confiança que os socialistas, na sua esmagadora maioria, sabem distinguir o que são as preferências pessoais de algumas pessoas e o que serve os interesses do país e serve os interesses do próprio PS. (…) Quando PS esteve unido em torno de uma candidatura presidencial, fez a diferença e elegeu o Presidente da República. Quando o PS não teve posição, ou se dividiu, os candidatos da direita foram eleitos. E, neste momento, acho que os socialistas têm de ter presente que temos tempos duros para o país e, mais do que nunca, é necessária uma boa articulação com a Presidência da República, mas uma articulação que sirva a democracia e que não seja de entendimentos de bastidores (…).
Marcelo Rebelo de Sousa, antes de ser Presidente, defendia um mandato único. Acha que seria preferível?
Acho. Uma revisão constitucional devia alargar o mandato, para aí a sete anos, e fazer um mandato único. Exactamente para não haver aquela história que vemos sistematicamente de, no fundo, o Presidente estar no primeiro mandato a pensar que vai ter de ser reeleito e a condicionar-se, mesmo que inconscientemente, pela necessidade de ser reeleito, porque a reeleição é uma validação do seu trabalho.
Outro assunto que está em cima da mesa tem que ver com as alterações às regras da contratação pública [simplificação de processos]. Já disse que era inaceitável. O que pensa fazer para contrariar esta vontade do Governo? Vai ser um tema da sua campanha?
Se fosse hoje Presidente da República, saberia muito bem o que fazer.
E o que fazia?
No momento em que os cidadãos estão muito encorajados por haver esta solidariedade europeia que se traduz na tal “bazuca” de fundos europeus, que nos vão ajudar a sair desta crise, não podemos usar os fundos só para voltar ao estado em que estávamos antes de os ter. É uma grande oportunidade para reformar o país. Ao mesmo tempo, os cidadãos também estão preocupados, porque têm a memória do passado em que houve colossais abusos com fundos europeus. (…) Não podemos cair no excesso de burocracia, mas também não podemos passar do oito para o oitenta, para o excesso de facilitação – designadamente com esta proposta do Governo que está em discussão na Assembleia da República que eleva os limites que dispensam a fundamentação e permitem o ajuste directo, porque essa é a receita para o clientelismo, o compadrio e a corrupção.
Mas o que faria, se fosse Presidente da República?
Não aceito o critério que aparentemente foi enunciado pelo primeiro-ministro que teria sido acordado com o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, de que não há renovação automática para determinados de mandatos para determinados cargos públicos. Não pode haver não renovação automática, tal como não pode haver renovação automática. É preciso uma apreciação caso a caso, que resulta de uma avaliação do cumprimento do mandato. (…) Ainda relativamente aos fundos europeus, não tendo nada que ver com a Iniciativa Liberal, concordo com a proposta de que se crie um portal que permita a total transparência e escrutínio de todos os contratos que o Estado, no âmbito dos fundos europeus, vai pôr na praça e que se controle todos os concorrentes. É a transparência que vai garantir a integridade do processo.
O primeiro-ministro já disse que o principal interessado em que haja transparência é ele.
Então é fácil, faça o tal portal [o primeiro-ministro prometeu entretanto fazê-lo]. Permitir um esquema de ajustes directos com um montante elevadíssimo obviamente não facilita o escrutínio, ou facilita o escrutínio a posteriori.
É preciso seguir o dinheiro.
Não é só a aplicação do dinheiro, é a qualidade das decisões, onde se vai aplicar. Não precisamos de mais elefantes brancos. É preciso um rumo estratégico que neste momento não se vê. Aí o Presidente da República pode ter um papel determinante no encontrar desse rumo, no definir quais são as prioridades – por exemplo, empresas que se candidatem e tenham sede numa offshore pura e simplesmente não devem ser aceites.
Este PS e este Governo ainda têm muitos dirigentes e também ministros que trabalharam com José Sócrates. Aparentemente ninguém deu por nada, não deram por nada quanto aos casos em que o ex-primeiro-ministro é acusado. O que mudou no PS e no país para que um caso destes não se repita?
Eu fui uma das socialistas que foram a um congresso dizer que o PS tinha de meter a mão na consciência relativamente à forma como se tinha deixado instrumentalizar por José Sócrates.
E o PS pôs a mão na consciência?
Não. Até hoje não a pôs suficientemente, mas no PS há muita gente boa que pensa como eu. E não estou a falar do papel que cabe à Justiça; estou a falar das consequências políticas que um partido como o PS devia ter retirado, até para instalar confiança não só nos seus militantes, mas em toda a sociedade.
Se for eleita Presidente da República, o que fará sobre a legalização da eutanásia, se lhe chegar às mãos essa proposta?
Eu sou a favor da legalização da eutanásia e a dolorosa experiência que acabo de viver, com o meu marido [faleceu recentemente], ainda mais reforçou essa convicção. Há um sofrimento da própria pessoa, mas também da família que pode ser evitado, se se sabe que se está perante uma situação que não tem regresso, que não tem remédio, que tem de ser evitado. O sofrimento é muito doloroso, é uma verdadeira tortura. Não podemos tolerar isso.