A Batalha de Anghiari de Leonardo da Vinci afinal nunca existiu
Esta é a tese defendida por uma equipa internacional de investigadores e historiadores de arte num estudo agora apresentado em Florença. Será o fim da demanda pelo “Santo Graal da história da pintura”?
Afinal, e ao contrário da convicção de alguns, e da expectativa e desejo de muitos, Leonardo da Vinci (1452-1519) nunca terá chegado a pintar A Batalha de Anghiari nas paredes do Palácio Velho de Florença. Esta é a tese defendida por uma equipa internacional de historiadores de arte e investigadores no volumoso ensaio de perto de 600 páginas La Sala Grande di Palazzo Vecchio e la Batalla de Anghiari di Leonardo da Vinci. Della Configurazione architettonica all'apparato decorativo (A Grande Sala do Palácio Velho e a Batalha de Anghiari de Leonardo da Vinci. Da configuração arquitectónica ao aparato decorativo), que foi lançado, esta quarta-feira, na Galeria dos Uffizi, em Florença.
Na conferência de imprensa de apresentação do estudo publicado pela editora Olschki, a historiadora italiana Francesca Fiorani, membro da equipa que se ocupou deste trabalho durante os últimos seis anos, anunciou o resultado com esta afirmação que parece colocar um ponto final no enigma que tem alimentado os meios (e os mitos) da história da arte: “Leonardo nunca pintou a batalha nessa parede [do Palácio Velho]”.
Explicando o método utilizado para a decifração deste enigma – muitos vêem-no como “o Santa Graal da história da pintura” –, a também professora da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, contou que a sua equipa começou por inverter o sentido da investigação. “Passámos da pergunta ‘Onde está a Batalha de Anghiari?’ à pergunta ‘Será que ela foi pintada realmente?’”, acrescentando-lhe “O que é que Leonardo fez no grande salão do Palácio Velho?”, disse Francesca Fiorani, citada pela agência de notícias Efe.
A resposta foi a que tanta gente não esperava (e temia): apesar de ter recebido uma encomenda para tal, Leonardo não chegou a pintar o grande fresco evocativo da Batalha de Anghiari. “Perdemos uma batalha, mas ganhámos um consenso científico”, resumiu a historiadora italiana, enfatizando o acordo alcançado para esse veredicto pela equipa de investigadores, cujo trabalho contou com o apoio do Departamento de Arquitectura da Universidade de Florença e da Câmara de Vinci.
Uma batalha dupla
A história é conhecida. Nos primeiros anos do século XVI (1503/05), Leonardo foi convidado pelo frade e político Piero Soderini a decorar a chamada Sala de Quinhentos no Palácio Velho, edifício que durante séculos foi sede do poder da república florentina. Ao mesmo tempo, outro nome grande da arte do Renascimento, bem mais jovem que Leonardo, Miguel Ângelo (1475-1574), foi desafiado a pintar outra parede do salão. Leonardo escolheu a lendária Batalha de Anghiari, que, pouco mais de meio século antes, em 1440, tinha oposto as forças florentinas contra as do ducado de Milão, com a vitória das primeiras. Já Miguel Ângelo terá optado pela Batalha de Cascina, esta travada em 1364, e também vencida pelas tropas de Florença, mas desta vez contra as de Pisa.
Nenhuma das pinturas foi acabada (ou mesmo verdadeiramente começada no local designado), já que pelas paredes do Palácio Velho terão apenas passado alguns esboços e cartões de preparação da pintura de Leonardo, que chegariam até nós.
O que verdadeiramente aconteceu nessa Sala de Quinhentos não se sabe. Mas o “encontro” entre os dois mestres do Renascimento, em fases bem diferentes das suas carreiras, foi pretexto para muita literatura, que viu nele uma “batalha” no campo da pintura, com o significado que esta arte então tinha no quotidiano das repúblicas da Península Itálica.
Algumas décadas depois, nos anos 1560, o salão do Palácio Velho foi decorado (ou redecorado?) com um fresco do pintor e arquitecto Giorgio Vasari (1511-1574), tapando assim o que quer que pudesse aí existir do projecto de Leonardo.
Na primeira década do século XXI, a descoberta da inscrição “Cerca, trova” (Procura, encontrarás) numa análise da obra de Vasari, celebrizado como um dos primeiros biógrafos de pintores, fez levantar novas expectativas sobre o que pudesse encontrar-se debaixo dela. E em 2012, o engenheiro italiano Mauricio Serracini conseguiu uma autorização do então presidente da câmara de Florença, Matteo Renzi (depois primeiro-ministro entre 2014-16), para, com uma equipa de investigadores americanos, procurar marcas de Leonardo sob o fresco de Vasari.
No fim desta operação que valeu a indignação de muitos historiadores de arte e especialistas em património, Serracini reivindicou ter encontrado pigmentos de uma tinta negra idêntica à que o mestre teria usado na criação da Mona Lisa e de São João Baptista, duas das três pinturas que tinha no seu quarto quando morreu e ambas na colecção do Louvre – uma teoria que outros investigadores viram mais como uma ficção à moda do Código da Vinci, de Dan Brown.
Comentando esse episódio, Francesca Fiorani reclamou esta quarta-feira em Florença que a investigação da sua equipa foi feita de forma “metódica, inteligente e rigorosa”, e também contra o ruído mediático e o “sonho infinito” de querer sempre encontrar novas obras do mestre.
No mesmo sentido, o historiador e investigador Marcello Simonetta, membro do The Medici Archive Project, criticou quem procura a todo o custo identificar novas pinturas de Leonardo ou de outros artistas. “A ignorância da História gera monstros”, disse o membro daquela organização que desde 1990 estuda a correspondência da poderosa dinastia da Florença renascentista.
Será isto um ponto final no enigma da Batalha de Anghiari de Leonardo ou haverá quem continue a defender que o “Santo Graal da história da pintura” se mantém escondido algures?