O mundo é uma aventura - e este não é (mais) um guia de viagens
São 20 anos em viagem em 348 páginas: não é um guia, é um itinerário de memórias que percorrem cinco continentes. Do encontro com Kadhafi ao quase encontro com a morte (no Laos), este é o testemunho da “curiosidade” de Rui Barbosa Batista, que ganhou “textura e vivências” por todo o mundo e que ele agora partilha em BornFreee - O mundo é uma aventura.
Começou a viajar “a sério”, como diz, “bastante tarde” - andava perto dos 30 anos -, porém, logo se deixou tomar pelo “frenesim” - 20 anos volvidos, o seu passaporte (que é como quem diz, passaportes) exibem 113 carimbos diferentes. De países que existem, de países que querem existir; de países onde foi uma vez, de países onde regressou várias vezes. Mas, mais do que uma colecção de países para apresentar (“e fotos para as redes [sociais]”), Rui Barbosa Batista busca experiências e pessoas. “Sou sobretudo um apaixonado pelos destinos ‘B’, os menos óbvios, menos desejados, menos turísticos e mais desafiantes logisticamente”, explica. “Logo, mais genuínos”, avalia. Por isso, o livro que lança esta quarta-feira, 7 de Outubro, não é (mais) um guia de viagens. É uma colecção de histórias e um testemunho da sua “curiosidade” que ganhou “textura e vivências” em viagem: BornFreee - o mundo é uma aventura.
O mundo que Rui Barbosa Batista, jornalista de profissão (na Agência Lusa) e blogger por prazer (Bornfreee), desenha ao longo das 348 páginas não é “todo” o mundo, nem sequer é todo o mundo que visitou. Os 53 países onde nos transporta nas suas crónicas deixam de fora ainda mais e, sobretudo, sublinha, “mais experiências”. Seleccioná-los foi como cortar um pedaço de si, confessa. “Pretendi registos equilibrados em termos de temáticas, ou seja, de tudo o que nos pode acontecer em viagem quando viajamos neste meu registo mais livre” - e há “experiências com pessoas, fronteiras complicadas, transportes épicos, situações insólitas, histórias pessoais”. Quis também “privilegiar as histórias fora da Europa, que nos transportam mais facilmente para outras culturas. E espalhá-las pelo globo” - no mapa mundo que abre o livro com indicação dos países referenciados, nota-se a predominância de África e Ásia.
Se as viagens aconteceram “ao sabor do vento, sem grandes roteiros definidos”, o livro disciplina a impetuosidade natural do autor, que depois de um começo “em falso”, digamos (com uma viagem com tudo marcado que o impediu de juntar-se a um grupo que conhecera logo no primeiro dia), passou a viajar sem nada marcado, excepto a primeira dormida no caso de chegar ao destino à noite. No livro - cuja capa exibe uma foto do Sudão, tons suaves -, as viagens seguem ordem alfabética (há países com mais do que um texto - mais uma vez, aqui são as experiências que contam), o que torna mais intuitiva a leitura. Um aparente paradoxo, já que é a intuição que torna as viagens de Rui imprevisíveis. “Viajo porque não conheço melhor expressão de liberdade. Sobretudo quando o fazemos de espírito aberto e privilegiamos o imprevisto, as maravilhas do inesperado ao invés do meticulosamente programado. Gosto de ter, a cada momento, todas as hipóteses e opções.”
Da África do Sul e da Arábia Saudita até ao Uzbequistão, passando por Nagorno-Karabakh (“essa espécie de país”, escreve, fonte de conflito entre o Azerbaijão e a Arménia, que na semana passada conheceu novos capítulos), sem esquecer Portugal (a subida ao Pico, o ponto mais alto do país), Rui Baptista dá-nos a conhecer a história do último pirata “português” do Belize e de como conheceu a sua ex-namorada Kristi. Os contratempos nas fronteiras (como no Azerbaijão), os problemas mais escatológicos (veja-se, por exemplo, a noite no Nilo), as experiências mais imprevistas (o “tropeçar” num aeroporto militar esquecido), as mais extremas (desde a visita ao maior campo de refugiados do mundo, no Bangladesh, à Depressão de Danakil, o local mais quente do globo, este um texto publicado originalmente na Fugas), as mais ousadas (como a entrada num abandonado, e entaipado, edifício do Partido Comunista Búlgaro, e a tentativa de entrar no edifício do KGB), as mais “mediáticas” (um encontro com Muammar Kadhafi), não faltam. E até uma experiência quase mortal, no Laos, fica registada. Na China, acompanhamo-lo em trabalho, mas num registo pessoal - neste caso, complementado com a perspectiva profissional, como quando reproduz o texto sobre a cerimónia da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim para a Agência Lusa. Passa pela Argentina e Nova Zelândia (os dois países que mais desejava visitar, “sobretudo pela sua estonteante beleza natural”), pelo Irão, Sudão, Etiópia, Colômbia e Senegal - e estes são os países que, confessa, mais o marcaram “por vários motivos”.
Faltou-lhe, revela, uma ou outra história “caricata” em países que “adorou”, mas que não quis que ficassem marcados por episódios de corrupção em fronteiras (embora haja um no Vietname) E ofertas de prostituição (há um equívoco que, afinal, revelou toda a generosidade de um pequeno país) – estas situações, diz, “não podem ser tomadas pelo todo”. Faltou-lhe uma crónica do que sente “representar a humilhação dos árabes ao cruzar as fronteiras e postos de controlo israelitas”. “Nessa viagem”, conta, “ainda não tinha a actual consciência, um quadro mais aprofundado da situação.” E viajar também permite isso: “Adoro alimentar-me de informação e vivências novas, seja com pessoas, lugares, experiências.” Em 20 anos de viagem, Rui foi testando “gostos e limites”, libertando-se de todo o tipo de amarras, “sejam elas físicas, emocionais, ideológicas, sociais, políticas ou religiosas”. E que venham outros tantos: “Quero continuar a aprender, a dar novos olhos ao meu mundo, renovar-me e crescer como ser humano.”
No seu horizonte estão três destinos que ainda não sabe quando irá visitar, mas que exercem poderoso fascínio sobre ele - o Iémen, para o qual já esteve a ponto de viajar, já tinha guia local e tudo, o Paquistão e a Quirguízia (este, “um fetiche de criança”). Contudo, assinala, “há desejos que vai “adiando propositadamente, para continuar a ter destinos estimulantes no horizonte, nos sonhos”.
Quaisquer que sejam os caminhos no globo terrestre, tem a certeza de que quer continuar as partilhar as suas experiências e aprendizagens. Adora contar as suas histórias: fá-lo com regularidade em público e estão sempre “à mão” no seu blogue, que nasceu da preguiça. “Era maçador, em viagem, ir respondendo aos e-mails dos amigos que, invariavelmente, perguntavam o mesmo”, recorda, e então, em 2009, quando estava a percorrer a África Oriental, do Quénia à África do Sul, um companheiro de viagem sugeriu fazerem um blogue sobre essa jornada.
“Resultado: deixei de ter muitas mensagens para responder, fiquei com um excelente registo de memória futura e os amigos sentiam que me acompanhavam, que estavam lá comigo.” Depois desse, nasceram outros cinco blogues, correspondentes a outras tantas viagens, até que Rui Barbosa Batista decidiu juntar tudo num só projecto, o Bornfree. O nome, explica, nasceu de uma t-shirt ‘Born Free’ que trouxe do Canadá, com um alce a conduzir uma Harley-Davidson. “A minha irmã disse que era a minha cara. Percebi que o nome estava tomado, mas contornei a frustração acrescentando-lhe a tal liberdade, ou seja, um ‘e’, Bornfreee.”
Durante o período de confinamento, Rui Barbosa Batista reencontrou a liberdade terminando o livro sobre as suas aventuras pelo mundo que era um projecto em procrastinação. Fechou os primeiros 20 anos de viagens numa espécie de livro de memórias - que como todas as memórias tem componente visual: o livro fecha quase como um álbum fotográfico, em 18 páginas de fotos. Não são imagens de panfleto turístico, são imagens do mundo tal como Rui Barbosa Batista o vê: belo e caótico, cheio de rostos e de vida “a sério”.