Rui Tato Marinho: “Conseguiram dominar um vírus e é isso que o mundo precisa agora”
Numa breve conversa com o PÚBLICO, Rui Tato Marinho, um dos autores do relatório do Programa Nacional para as Hepatites Virais (publicado em 2019), reagiu ao anúncio do Prémio Nobel da Medicina atribuído à descoberta do vírus da hepatite C considerando que a decisão do comité só peca por ser tardia.
Há já vários anos que o director do serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, Hospital Santa Maria, em Lisboa, esperava que o Nobel da Medicina reconhecesse o mérito dos cientistas ligados ao vírus da hepatite C. Afinal, nota Rui Tato Marinho, este foi “o primeiro vírus crónico com risco de cancro que o homem conseguiu eliminar para sempre e sem efeitos secundários”. Um salto que, aliás, pode dar valiosas lições em tempo de covid-19. O especialista que preside à Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia destaca que o acesso a um tratamento com 97% de taxa de sucesso continua a ser uma prioridade em Portugal. “A prioridade é fazer chegar o comprimido à boca da pessoa que precisa.”
Como vê este Prémio Nobel atribuído a descobertas relacionadas com o vírus da hepatite C?
Como cortar a meta. Ou cortar mais uma das metas da vida. Porque já há mais de dez anos que nos perguntávamos no meio científico porque é que ainda não tinham o Prémio Nobel. Esta é uma história de sucesso da medicina moderna. Sabíamos que existia o vírus, em 89 descobre-se o vírus, encontram-se testes, os chamados testes serológicos, e tornam-se as transfusões muito seguras. Os avanços na cura da hepatite C começam com um sucesso de 6% e com terapêuticas muito difíceis e a pouco e pouco foi aumentando até chegar há cinco anos a uma eficácia de 97%.
Mas porque acha que foi preciso esperar tanto tempo por este reconhecimento?
Não sei. Sempre que fazíamos essa pergunta no meio científico ficávamos sem perceber muito bem. Foi o primeiro vírus que a medicina humana conseguiu identificar e passado poucos anos, em 2013 ou 2014, arranjaram antivíricos, comprimidos, com uma eficácia de 97%, quase 100%. Uma cura. São os tais antivirais de acção directa, é medicina de precisão. E foi o primeiro vírus crónico com risco de cancro que o homem conseguiu eliminar para sempre e sem efeitos secundários. Os outros, a hepatite B e o VIH, não se consegue. Pelo menos, há uns cinco anos que já deviam ter o Prémio Nobel. Há quem refira que existia alguma discussão porque alguns deles são cientistas que trabalhavam em empresas privadas...
Porquê agora?
Uma coisa que pode ter tido uma influência foi o know how que eles trouxeram através da identificação do vírus, descobrir os testes e a medicação... Eles conseguiram um pacote completo para dominar um vírus e é isso o que o mundo precisa agora [com o SARS-CoV-2 e a covid-19].
Em Portugal, tínhamos em 2019 já 25 mil pessoas tratadas com os antivirais de acção directa. Como está a situação agora e quais os principais desafios?
Agora serão uns 27 mil. Esta é uma doença muito silenciosa e só dá sintomas numa fase já muito avançada, defendemos que todos os portugueses que vão fazer análises, ou seja, assim como fazem a VIH e à hepatite B, devem fazer à hepatite C. A população prisional e os toxicodependentes não são os únicos grupos afectados na população. Esses testes são o que vai permitir identificar pessoas que não sabem que têm hepatite e evitar que apareçam mais tarde, numa altura em que já têm um cancro no fígado e em que já não há muito a fazer. Este Prémio Nobel pode ajudar agora numa coisa que temos mesmo de fazer que é sermos muito mais pró-activos na identificação das pessoas e na facilitação do acesso ao tratamento. Ainda há alguns hospitais onde o acesso ao tratamento ainda é um bocado dificultado do ponto de vista burocrático.
Quanto tempo esperam actualmente os doentes pelo tratamento? O tempo de espera médio não é de 20 e tal dias?
Depende dos hospitais. No meu hospital [Santa Maria] é essa a realidade. Mas há outros hospitais em que pode demorar mais algum tempo.
Quanto no limite?
Conheço alguns casos que demoram cinco ou seis meses. O processo é neste momento ainda demasiado burocrático e já não se justifica. A plataforma que foi criada e que envolve também o Infarmed deve ser adaptada e modernizada para facilitar o acesso ao tratamento.
Ainda vale a pena avaliar o impacto financeiro, a relação custo e benefício, deste tratamento?
Foi feito um estudo em 2015 pelo Infarmed, na altura em que o ministro da Saúde era Paulo Macedo, que já mostrava o benefício brutal em termos de salvar vidas. Mas, na minha opinião, não vejo necessidade de fazer mais estudos sobre isso. Podemos fazer os estudos que quiserem desde que isso não sirva para dificultar o acesso ao tratamento. Mas acho que não vale a pena fazer essas contas. Não é uma prioridade.
Qual é a prioridade?
A prioridade é fazer chegar o comprimido à boca da pessoa que precisa.
E melhorar o diagnóstico...
Sim, generalizar o teste da hepatite C, que é muito simples. Aí vamos apanhar talvez meio por cento da população que tem hepatite C e não sabe.
Antes dos antivirais como eram tratadas as pessoas?
No início, o tratamento começava com injecções três vezes por semanas, com imensos efeitos secundários, em que só curava 6%. As pessoas ficavam deprimidas, com ansiedade, queda de cabelo e deixavam de trabalhar. O tratamento durava entre seis meses e um ano. Agora o estado da arte é um comprimido uma vez por dia, sem efeitos secundário, durante cerca de dois meses e uma taxa de sucesso de 97%.
É o tal cortar da meta de que me falava...
Sim. Acho que o Prémio Nobel que é atribuído agora é merecido pelo modelo de ataque a um vírus – e temos tanto, o da sida, hepatite B, gripe, agora o da covid – é a cereja em cima do bolo. É assim: se nós conseguimos dominar um, ponto final parágrafo, estamos a tratar dele e é passar para outro. Acredito que a partir desta dinâmica com a hepatite C – conhecermos os factores de risco, os testes, os tratamentos e o que acontece às pessoas – seja possível agora aproveitar este know-how todo para o mundo da covid.