Famílias multiespécies e a reinvenção da vida frágil
Quão interligadas estão as vidas de humanos e de outros animais? Habitando mundos de afetos mais ou menos intensos, e de várias latitudes, compreender a complexidade das relações interespécies implica olhar para aquilo que une uns e outros, na sua condição de fragilidade partilhada, enquanto seres vivos num planeta em risco.
Na pequena casa nos arredores de Sintra, Madalena recebe-nos com a alegria da expectativa, mal contida pelos seus nove anos. Enrolado nas suas pernas, Pantufa, o pequeno yorkshire ladroengo, força insistentemente a passagem. A euforia é geral. E é só quando tudo se aquieta que Lucas, o gato laranja, resolve dar aquele ar de sua graça dos felinos. Deslizando suave e insinuante, entre pernas de mesa, cadeiras, objetos espalhados. O ladrar incessante do Pantufa ressoa na minha cabeça muito depois de esta entrevista ter terminado. A sua voz, o seu corpo em constante movimento, é a primeira mensagem que recebo, e que em mim perdura. Uma mensagem de alegria e entusiasmo. Mas também de inquietude. Que nos fala de como as vidas de humanos e animais se cosem umas às outras, em ligações instáveis e dependentes de um contexto.
A família de Madalena é uma das que o projeto CLAN visitou ao longo do seu trabalho de campo. Este projeto, que coordeno desde 2018 no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, propõe-se explorar as relações entre crianças e animais de companhia, no contexto da vida familiar e doméstica. Os animais são, afinal, “membros da família” como os outros? Como cuidam as famílias destes animais? O que quer dizer “cuidar” de um animal, para crianças e adultos? E os animais, também cuidam dos humanos?
É precisamente a questões como estas que os estudos sobre as famílias multiespécies, ou seja, famílias formadas por animais humanos e não humanos, em coexistência, tentam responder. Contribuindo para a emergente e interdisciplinar área dos estudos dos animais, interrogam-se sobre como, no seu dia a dia, humanos e outros animais negoceiam os termos e limites da sua relação. Na verdade, as famílias são, e sempre foram, multiespécies. E se corresidência parece ser um requisito comum para as definir, a integração de um animal de companhia não tem um sentido único. Apesar da diversidade, ao descreverem os seus mundos pessoais, adultos e crianças incluem espontaneamente humanos e não-humanos. Mas como se conjuga a negociação das relações interespécies, na vida prática, de todos os dias?
Somos todos corpos que se afetam
Na pequena casa dos arredores de Sintra, onde Madalena vive com a mãe, o irmão, o cão Pantufa e o gato Lucas, a vida dos animais de companhia e dos humanos conjuga-se através do corpo. Das sensações múltiplas, mais intensas ou mais difusas. É o corpo que sente os cheiros fortes. Que escuta o ladrar incessante. O miar inesperado. O borbulhar silencioso dos peixes no aquário. É o corpo que sente o calor de um outro corpo, quando vivo. E o frio, quando ele se apaga na morte. É através do corpo que humanos e animais se encontram, se conhecem, e aprendem a viver em comum.
Neste encontro, afetam-se mutuamente. Esta capacidade de sentirem sensações desencadeadas pelo contacto mútuo contribui para ligar espécies diferentes, na sua convivialidade. Uma força poderosa, impessoal e autónoma, os afetos expressam uma intensidade que circula entre corpos. Infligem uma mudança de estado nos corpos neles envolvidos. Produzem impacto, movimento. E expressam um modo de estar “apegado” e ser “movido”. São por isso relacionais. Os corpos afetados vão-se, assim, transformando noutra coisa. Vão-se tornando o que “são”. Através desta força poderosa de afetar aquilo em que os outros se tornam, ou vão sendo, humanos e outros animais vão-se co-construindo, definindo-se mutuamente na produção de uma vida e mundo comuns.
A forma como os corpos se impactam dita também o tipo de relação que se vai construindo. Mais ou menos próxima ou protetora. Mais ou menos distante ou indiferente. Mais ou menos pacífica ou violenta. Na construção destes laços, importa reparar na tonalidade da experiência afetiva. Que é diversa, e opera num continuum, entre os extremos do prazer e da dor. Pois nem só de experiências agradáveis se fazem as relações entre humanos e animais. Para os humanos, são agradáveis o toque suave de um pelo macio, o ronronar de um gato, o canto de um pássaro. E desagradáveis, ou até dolorosas, as provocadas por uma mordedura, uma arranhadela, um ladrar estridente, um cheiro nauseante. E ainda indiferentes, quando esses contactos são percebidos como não tendo um impacto reconhecível como positivo ou negativo. Atender à textura destes afetos é fundamental para perceber a ambivalência dos humanos em relação aos outros animais, envoltas em contradições: amor e medo, aversão e fascínio. Contradições que produzem versões distintas do mesmo animal, consoante ele se adapte melhor ou pior às expectativas ou necessidades dos humanos. E que permite captar onde e como se começa a construir a vulnerabilidade de certas espécies, abrindo caminho para vidas mais precárias, feitas de pequenas ou grandes negligências, maus tratos ou abandono.
Cuidar também é um acto multiespécies
É também pelo contacto físico dos corpos que se operam as tarefas do cuidar. Dar banho, alimentar, administrar tratamentos médicos ou medicação, limpar a caixa de areia dos gatos, lavar a gaiola do pássaro, ou o aquário dos peixes, passear com os cães. Cuidar de um animal implica um complexo orquestrar de muitos contactos corporais, diretos ou indiretos, e respetivas tonalidades afetivas, mais positivas, negativas ou neutras.
Nas famílias com filhos, precisamente aquelas onde há mais animais, estes fazem parte de um imaginário parental a respeito do que é tornar-se humano aprendendo a cuidar de um outro: os pais imaginam que tratar de um animal fará dos seus filhos cidadãos melhores, mais atentos às necessidades alheias, mais em sintonia com o mundo natural à sua volta. Porém, as práticas em casa denunciam a difícil execução deste objetivo: a maioria das tarefas é assegurada por adultos, e não pelas crianças. Entre as famílias que entrevistámos, na difícil negociação do quotidiano entre pais e filhos, com as dificuldades trazidas por jornadas escolares longas e atividades numerosas, os animais não podem esperar, e as necessidades básicas acabam por ser asseguradas pelos adultos. Aqui, a espécie faz toda a diferença, com as suas necessidades e cuidados específicos, e a idade da criança também, pela autonomia que implica. Esta é, aliás, um fator fundamental. É nas famílias com modelos educativos mais orientados para a autonomia que as crianças são, mais cedo e mais frequentemente, chamadas a partilhar os cuidados dos animais.
Por outro lado, cuidar também é um acto multiespécies: os animais cuidam dos seus humanos, e também aí o contacto corporal é fundamental. É-lhes reconhecido um papel no acompanhamento das tristezas severas, ou noutras condições de fragilidade por doença física ou mental, como na recuperação no luto por perda de alguém importante, humano ou animal. Os cães têm aqui um papel destacado, por serem vistos como particularmente empáticos, e pela atividade física que proporcionam, companheiros enérgicos de brincadeiras. E enquanto para os adultos a construção do laço se faz sobretudo como responsabilidade, através das tarefas do cuidar, para as crianças faz-se sobretudo como diversão, através do acto de brincar. Como diz Rita, 11 anos, a respeito dos seus dois cães, “tudo o que eles precisam para estar bem é que brinquemos com eles”. A brincadeira como um novo paradigma de cuidarmos uns dos outros. Reunir num só acto o peso de cuidar e a leveza de brincar. É preciso talvez reinventar a brincadeira, entre os adultos. E assim um novo modo de lidar com os animais e a natureza.
Corpos confinados, ou a reinvenção da vida frágil
Se a relação com os animais de companhia passa por corpos que se afetam mutuamente, esse não é um processo linear nem estável, devido à tonalidade dos afetos envolvidos. Por vezes, estes animais são vistos como próximos, com um nome, individualidade e personalidade próprios. Outras vezes tornam-se descartáveis, caso deixem de ser vistos como adaptados às necessidades e estilos de vida dos humanos. Não deixam, assim, de ocupar uma zona cinzenta entre o animal e o humano. Uma ambivalência que atravessa o modo como os humanos se relacionam com todos os animais, de companhia ou não, e que contribui para a manutenção de um sistema de valores baseado na excecionalidade do humano sobre outras espécies, e do estatuto superior do primeiro sobre as últimas.
O estatuto dos animais de companhia nas famílias é, por isso, instável. Num momento, considerados úteis, amigos, companheiros, enquanto se ajustam às expectativas humanas; no seguinte, uma ameaça, por exemplo quando vistos como portadores de uma doença transmissível aos humanos, tornando-se uma vida indesejável, e de que é possível dispor. Esta condição precária é inflacionada por condições estruturais de incerteza e desigualdade que também afligem as vidas dos humanos. A pobreza, a instabilidade laboral e económica, a falta de acesso a cuidados de saúde, a fragilidade das redes interpessoais, afetam transversalmente as vidas de humanos e animais que vivem em conjunto. Uns e outros partilham esta condição de precariedade, que é urgente reconhecer, e atender.
Talvez este ano de 2020 nos tenha trazido uma oportunidade rara para operar este reconhecimento. Por via da pandemia, fomos obrigados a recolher ao espaço confinado da casa, enfrentando o medo, a ansiedade, a angústia e a incerteza de um tempo com regras desconhecidas. Neste lugar pandémico-distópico, os animais de companhia constituíram um foco de resistência. Uma suspensão das regras do distanciamento social, uma válvula de escape do confinamento, pela forma como ignoraram as leis que impediram temporariamente os corpos de se tocarem, de se afetarem. Leis que admitiram o uso do espaço público por humanos, desde que acompanhados pelos seus cães. Mas leis que também impediram os abraços. E que aos animais passaram ao lado. Cães e gatos, principalmente, continuaram a invadir os corpos dos seus humanos. A “afetá-los”. E nisto também podem ser lidos como símbolos de uma resistência, no espaço privado, à nova hegemonia que barra a interação afetiva. Os animais não sabem o que é, nem respeitam, o “distanciamento social”, e os seus donos agradecem. Corpos confinados, mas não distanciados, equilibrando-se em cima do muro estreito das suas vidas precárias. Talvez os humanos ganhem uma nova consciência, mais aguda, da fragilidade partilhada. E da necessidade de, como diz o filósofo Harmut Rosa, aprender um novo “modo de ressonância”, que nos conduza a uma convivência mais harmoniosa com outras espécies: “parar, aprender a escutar, e só então responder”, em lugar de “fixar e controlar”.
Socióloga, ICS-ULisboa