Um adeus ao café

O café é uma fronteira entre culturas, desde o expresso italiano, ao diluído café americano, ao espumoso café turco, o café com chicória francês. É o negro, quente e térreo café que nos lembra que o mal existe e ainda assim nos dá esperança.

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Emre Gencer/Unsplash

Mahmud Darwich estava a acordar no seu apartamento, numa madrugada de Junho de 1982, quando o exército israelita cercou Beirute. Durante horas, as bombas fizeram ruir prédios, estraçalharam corpos, ceifaram vidas. E Darwich fez o que faria qualquer outra pessoa na mesma situação: café.

Lentamente, o poeta palestiniano triturou à mão os grãos negros, enchendo depois o filtro com aquele manto solto e aromático. Depois verteu a água quente, mas não fervida, sentindo o fumo e o aroma a enrolarem-se-lhe nas narinas como cobertores. Finalmente bebeu-o muito devagar, um gole no intervalo de cada bomba, olhando o sol pálido que espreitava através das janelas estilhaçadas pelas explosões, e deixando que o sabor doce, amargo e espesso do café oriental lhe relembrasse que ainda era humano.

O café é a bebida mais importante dos nossos tempos. Foi o café que trouxe a expansão marítima aos portos europeus, e foi para cultivar o café que se levaram escravos para as Américas. Foi o café que aqueceu as tertúlias do iluminismo, o café que manteve activos os trabalhadores da revolução industrial nas jornadas de 14 horas. O café é uma fronteira entre culturas, desde o expresso italiano, ao diluído café americano, ao espumoso café turco, o café com chicória francês. É o negro, quente e térreo café que nos lembra que o mal existe e ainda assim nos dá esperança.

O café anima e adormece, acelera o coração e a vida, e, no entanto, pede-nos lentidão.

Descobri isso em O Cafézeiro, uma loja histórica do Porto, com vidros pintados à mão, latas de chá, sacos de serapilheira autênticos e moinhos antigos de café com aspecto de máquinas alquímicas, gavetas em madeiras para cada tipo de grão, e o senhor Zé Manuel.

O senhor Zé Manuel é um homem de meia idade, de cabeça luzidia e bigode farfalhudo, que esconde um sorriso interminável. Trabalhou nesta loja entre os 12 e os 57 anos, sempre a fazer contas à mão e a moer o café também à mão, dando energicamente ao braço nas manivelas de um moinho em madeira cúbico, para depois deixar cair em cascata aquele pó de terra mais perfumado. Fez isto para milhares de pessoas na sua vida, vindas de todos os lados, e delas, como agradecimento, recebeu postais vindos de Espanha, França, Alemanha, Polónia, Hungria, Chipre e até do Líbano.

Fê-lo quase todos os dias da sua vida até ao dia em que, no envelope em que costumava encontrar o salário, encontrou uma carta para o centro de emprego. A loja fechou, apesar do carisma, de ter o selo de Porto com Tradição, de vender as mais maravilhosas e fascinantes bebidas do mundo. Deixou-me a mim sem café e ao senhor Zé sem trabalho, provavelmente para sempre, pois, apesar de estar a meio da vida, sabemos que em Portugal aos 50 anos se é demasiado velho para alguém nos contratar.

Se Darwich teve o café para o reconfortar e uma voz para contar aquilo que viveu no espantoso livro Uma memória para o esquecimento, ninguém irá contar o sofrimento e a tristeza anónima do senhor Zé Manuel, cercado pelo medo da miséria, ferido pela sua inutilidade para a sociedade e sem mesmo ter o aroma de um café para o confortar.

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