UE avança com processo contra o Reino Unido por violação do acordo do “Brexit”
Ursula von der Leyen diz que “a UE mantém a sua palavra” e respeita sempre os seus compromissos, num recado a Boris Johnson, por causa da polémica legislação britânica. Londres tem um mês para responder à carta formal de notificação.
A Comissão Europeia enviou esta quinta-feira de manhã uma carta formal de notificação ao Governo britânico, que é o primeiro passo de um processo de infracção por violação dos termos do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia.
Numa curta declaração, de menos de um minuto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que o processo foi iniciado depois de ter terminado o prazo dado por Bruxelas a Londres para corrigir ou retirar as partes contenciosas da lei do mercado interno britânico, aprovada na Câmara dos Comuns de Westminster na quarta-feira.
“Esta lei, pela sua própria natureza, é uma violação da obrigação de boa-fé que está vertida no acordo de saída, afirmou Von der Leyen. E, “adoptada nos termos em que está, é uma contradição total com o Protocolo da Irlanda” anexo ao tratado, e que salvaguarda os termos do acordo de paz de Sexta-feira Santa (1998), que pôs fim a três décadas de conflito sectário na ilha da Irlanda.
“Tínhamos convidado o Governo do Reino Unido a retirar as partes problemáticas da legislação até ao fim de Setembro. O prazo terminou ontem”, declarou a líder do executivo comunitário, acrescentando que Downing Street dispõe agora de um mês para responder à carta formal de notificação.
Se não for encontrada uma solução, o processo de infracção corre até ao Tribunal Europeu de Justiça. O incumprimento do acordo de saída poderá levar à aplicação de sanções financeiras ao Reino Unido. E se for accionado e mecanismo de arbitragem que está previsto no próprio tratado, o resultado poderá culminar na suspensão de parte ou da totalidade do acordo.
“A Comissão continuará a trabalhar incansavelmente para uma correcta execução do acordo de saída”, garantiu Ursula von der Leyen, que terminou a sua declaração com uma alfinetada ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. “Nós na UE mantemos a nossa palavra e honramos os nossos compromissos”, afirmou.
No Twitter, o negociador-chefe da UE, Michel Barnier, deu respaldo à posição da Comissão, defendendo a indispensabilidade de se cumprir o acordo do “Brexit”.
“A execução total e efectiva do acordo de saída será sempre uma prioridade absoluta para a UE. É o resultado das longas negociações entre UE e Reino Unido e a é a única maneira de protegermos os Acordos de Sexta-Feira Santa e de garantirmos a paz e a estabilidade na ilha da Irlanda”, escreveu o Barnier, naquela rede social.
Em declarações ao PÚBLICO, o eurodeputado Pedro Silva Pereira, que integra o grupo de coordenação para o Reino Unido do Parlamento Europeu, e esta quinta-feira foi designado relator para a implementação do acordo de saída, considerou que “a Comissão Europeia fez o que devia fazer” ao mobilizar os instrumentos jurídicos que garantem e sustentam a aplicação do tratado que assinou. “O assunto é sério. A UE tinha de reagir com firmeza e sinalizar que não tolera este comportamento”, disse.
Um porta-voz do Governo britânico reagiu à notificação da UE dizendo que Downing Street “apresentou, de forma clara, as suas razões” para modificar algumas disposições do acordo e deixando garantias sobre o compromisso de Johnson em relação ao processo de paz irlandês.
“Precisamos de criar uma rede de segurança jurídica que proteja a integridade do mercado interno do Reino Unido e que garanta que os ministros [britânicos] podem cumprir sempre as suas obrigações para com a Irlanda do Norte e proteger os méritos do processo de paz”, explicou o porta-voz, citado pela Reuters.
Lei polémica
A lei em causa dá poderes unilaterais ao Governo britânico para alterar ou não cumprir os compromissos assumidos com Bruxelas sobre a circulação de bens entre a Irlanda do Norte e o restante território britânico, caso as partes não consigam chegar a um novo acordo de parceria económica e política até ao final do ano. As conversações continuam – a nona ronda negocial conclui-se esta sexta-feira – mas num ambiente contaminado pela decisão britânica.
A legislação rejeita a solução ratificada pelos dois blocos para evitarem a edificação de uma fronteira física entre República da Irlanda (Estado-membro da UE e do mercado único) e Irlanda do Norte (pertencente ao Reino Unido), que passava pela criação de uma “fronteira” aduaneira ao longo do mar da Irlanda.
A lei estipula que não haverá quaisquer taxas ou restrições aplicáveis aos produtos que entrem na Grã-Bretanha, vindos do território norte-irlandês, e assume claramente, no seu texto, o incumprimento de direito internacional: “Algumas disposições [da lei] são aplicáveis, não obstante a inconsistência ou incompatibilidade com o direito interno e internacional.”
O acordo do “Brexit” foi negociado e assinado pelo Governo de Johnson e ratificado pelo Parlamento britânico. Para além disso, foi amplamente promovido pelo Partido Conservador na campanha para as eleições legislativas antecipadas de Dezembro do ano passado, que acabaram por ser vencidas de forma clara pelos tories.
Foi, precisamente, por ter conseguido renegociar o acordo de “divórcio” que a ex-primeira-ministra Theresa May tinha concluído com os 27 que Boris Johnson conseguiu oficializar a saída do Reino Unido da UE a 31 de Janeiro deste ano.
No entanto, o executivo conservador argumenta agora que o acordo põe em causa a integridade territorial do Reino Unido e defende que a nova lei pretende salvaguardar o mercado interno britânico.
A oposição interna e muitas figuras relevantes dentro do Partido Conservador – como os antigos primeiros-ministros John Major, David Cameron e Theresa May – acusam o Governo britânico de estar a pôr em causa a imagem e a reputação do Reino Unido, ao assumir abertamente que não pretende cumprir os compromissos jurídicos e políticos assumidos num tratado internacional.
As preocupações do lado europeu com a implementação do acordo de saída não se esgotam no Protocolo da Irlanda e estendem-se também ao primeiro e mais fundamental capítulo desse documento jurídico: os direitos dos cidadãos. Como confirmou Pedro Silva Pereira, os cidadãos da UE estão a confrontar-se com dificuldades e problemas nos processos administrativos para a obtenção do estatuto de residentes no Reino Unido.