Artistas exigem que público possa ver já as pinturas do Ku Klux Klan de Philip Guston

Em carta aberta, cem artistas acusam a National Gallery de Washington, os Museum of Fine Arts de Houston e de Boston e a Tate Modern de Londres, que anunciaram a semana passada o adiamento por quatro anos de Philip Guston Now, de “condescendência para com o público”: “Façam o trabalho necessário para apresentar esta arte em toda a sua profundidade e complexidade”, escrevem.

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Open Window II é uma das obras através das quais Philip Guston abordava a responsabilidade partilhada dos americanos na normalização do racismo DR

Perante a série de pinturas em que Philip Guston colocava como protagonistas membros encapuçados do Ku Klux Klan, os quatro museus que se preparavam para acolher uma retrospectiva do artista decidiram recuar. A semana passada, anunciaram o adiamento por quatro anos da mostra, justificando que a série de pinturas em questão “precisa de ser melhor contextualizada devido ao momento político”. A decisão motivou uma carta aberta, publicada esta quarta-feira no Brooklyn Rail e assinada por cerca de 100 artistas, onde a National Gallery of Art de Washington, os Museum of Fine Arts de Houston e de Boston e a Tate Modern de Londres são acusados de se esconderem da controvérsia. Exigem que as exposições sejam mantidas nas datas programadas e que as instituições “façam o trabalho necessário para apresentar esta arte em toda a sua profundidade e complexidade”.

A exposição, cuja inauguração esteve marcada para Junho na National Gallery of Art de Washington, sendo então adiada devido à pandemia de covid-19, era composta de 125 pinturas e 70 desenhos do artista canadiano-americano nascido em Montreal, em 1913, e falecido em Nova Iorque, em 1980. Entre elas estavam as 25 pinturas, datadas da década de 1970, em que o pintor, judeu, homem de esquerda, regressava ao imaginário do Ku Klux Klan que lhe deixara forte impressão na infância e que já retratara artisticamente nos anos 1930. Integradas numa fase em que Guston se dedicava a explorar e dissecar temas ligados à identidade americana, mostravam figuras encapuçadas em cenário banais do quotidiano, forma de denunciar como a ideologia do Klan se encontrava entranhada no tecido social do país.

Dizendo-se “chocados e desapontados”, os signatários da carta aberta acusam os museus em causa de “traírem a arte de Guston” e “de condescendência para com o público que é suposto servirem”, escreve o New York Times. Entre os signatários, que formam um grupo diverso de artistas de diferentes origens, idades e áreas criativas (à centena inicial juntaram-se rapidamente outras centenas de signatários, relata o diário americano), encontram-se Matthew Barney, Joan Jonas, Ralph Lemon, Nicole Eisenman, Ellen Gallagher, Wade Guyton, Rachel Harrison, Martin Puryear, Charles Gaines ou Julie Mehretu. O adiamento, escrevem, é a admissão do falhanço dos museus perante “o desafio da renovada pressão para justiça racial em crescendo nos últimos cinco anos”.

Temer a controvérsia

A semana passada a filha de Guston, responsável pela fundação com o nome do seu pai, foi uma das vozes a contestarem a decisão. “Há meio século o meu pai fez um corpo de trabalho que chocou o mundo da arte. Não só violou o cânone do que devia pintar um artista abstracto naquele tempo em que havia uma crítica de arte especialmente doutrinária, como se atreveu a colocar ao espelho a América branca, expondo a banalidade do mal e o racismo sistémico com que ainda hoje nos confrontamos e lutamos”. Os signatários da carta aberta contestam e criticam fortemente a incapacidade que os quatro museus demonstram em lidar com a ambiguidade e complexidade da obra de Guston. Acusam-nos mesmo de, com o cancelamento, darem prova inadvertida da sua fragilidade no que às questões de igualdade e representatividade diz respeito. “As pessoas que dirigem as nossas grandes instituições não querem meter-se em confusões. Temem a controvérsia. Desconfiam da inteligência do seu público. E percebem que fazer lembrar hoje aos frequentadores dos museus a supremacia branca não é apenas falar-lhes do passado ou de acontecimentos noutros lugares. É, também, levantar questões desconfortáveis sobre os próprios museus – sobre as suas fundações raciais e de classe”. Segundo os signatários, “as convulsões que nos atravessam a todos não acabarão até que se atinja a justiça e a igualdade": “Esconder imagens do KKK não servirão esse fim. Precisamente o contrário. E as pinturas de Guston insistem que a justiça nunca foi atingida”.

Na sequência dos protestos anti-racistas generalizados que este Verão se seguiram ao assassinato de George Floyd por agentes policiais, os curadores da exposição levaram a cabo uma revisão dos textos contextualizadores das obras, a afixar nas paredes dos museus, tendo em especial atenção o impacto que estas poderiam ter em visitantes afro-americanos — o catálogo da exposição, onde é analisada em profundidade a relação da obra de Guston a questões como o racismo e o anti-semitismo, já foi de resto publicado. Ainda assim, directores e administradores decidiram que tal não seria suficiente para abrir a exposição ao público neste momento. Um dos administradores da National Gallery de Washington, Darren Walker, presidente da Fundação Ford, defendia a semana passada a posição do museu, argumentando que os acontecimentos dos últimos meses alteraram profundamente, nos Estados Unidos, a relação nas artes com “questões ligadas a um imaginário racista tóxico e incendiário”, “independentemente das virtudes ou da intenção do artista”. Daí, informavam então os responsáveis pela National Gallery, a necessidade “de dar um passo atrás e trazer mais vozes e perspectivas para definir como apresentar o trabalho de Guston ao público”. Fazê-lo, diziam, demoraria tempo — aparentemente, quatro longos anos.

Em resposta àquelas considerações, a carta aberta cita declarações de Musa Mayer ao New York Times: “O meu pai atreveu-se a tirar o véu à culpabilidade branca, ao nosso papel partilhado perante o terror racista que ele testemunhou desde a infância, quando o Klan marchava abertamente, aos milhares, nas ruas de Los Angeles. Enquanto imigrantes judeus pobres, a sua família fugira do extermínio na Ucrânia. Ele sabia o que era o ódio. Foi o tema das suas primeiras obras. Este devia ser um tempo de reavaliação e de diálogo. Estas pinturas vão de encontro ao momento em que estamos hoje. O perigo não reside em olhar para o trabalho de Philip Guston, mas em desviar o olhar”.

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