Os governos são como as rosas: murcham
O facto de dois ministros entrarem em rota de colisão sobre presidenciais em público – ou, melhor, sobre Ana Gomes – é um profundo sintoma desse princípio do fim
O Governo está a acabar – pode parecer estranho, porque o PS continua a liderar as sondagens e o PSD não descola. O problema é que já vimos isto antes. O perfume do fim de ciclo anda no ar e já alguns comentadores o identificaram: Marques Mendes fê-lo no passado domingo, ao falar no “princípio do fim”, e ele, que era ministro de Cavaco Silva, sabe bem como isso foi.
Os governos acabam como as rosas e os casamentos. As rosas murcham, os casamentos às vezes nem se sabe bem o que lhes acontece. É algo que se parte e é nessa coisa decisiva e raramente identificável que se pode encontrar o princípio do fim. Mas tal como Guterres do ano 2000 não tinha nada a ver com Guterres de 1995, António Costa em 2020 não é o mesmo que António Costa de 2015. Costa, em 2015, era o protagonista de uma aliança de esquerda que fez o corte com Passos/Portas e a troika. Costa 2020 estava a ameaçar a demissão do Governo há coisa de um mês.
O facto de dois ministros entrarem em rota de colisão sobre presidenciais em público – ou, melhor, sobre Ana Gomes – é um profundo sintoma desse princípio do fim. Se é verdade que Cavaco apoiou Mário Soares em 1991, o contrário nunca seria possível – o PS não apoiaria Cavaco em caso algum. Ainda que Marcelo não seja Cavaco, Costa e alguns dos seus mais próximos parecem não conhecer o partido que dirigem.
Ao dizer de forma peremptória, na TVI-24, que Ana Gomes era uma “má candidata para o PS”, Augusto Santos Silva provocou uma reacção brutal de Pedro Nuno Santos, que se autocensurava sobre as presidenciais por causa do aviso de Costa – que lhe era claramente dirigido – de que os ministros não deveriam falar do assunto por causa da relação institucional com o Presidente da República. Pedro Nuno não respondeu só a Santos Silva sobre Ana Gomes (“Quem decide quem o PS apoia são os órgãos do partido. Ponto. Não é nenhum membro do Governo”), mas também respondeu a Costa e procurou desmontar a narrativa em curso entre vários dirigentes do PS sobre Ana Gomes, a do alegado “extremismo” ou “populismo”.
“Não podemos confundir extremismos com coragem. Extremismo é uma coisa; coragem de dizer as coisas como elas são, de as afrontar, é outra completamente diferente. Cá eu gosto de gente com coragem e que nunca se engane sobre ao lado de quem tem de estar: ao lado do povo, dos trabalhadores, das famílias”. Esta foi a parte II do discurso de Pedro Nuno no último congresso, que tanto irritou Costa e que o levou a dizer que não tinha “metido os papéis da reforma”. Só que agora a reforma do primeiro-ministro parece mais próxima e as presidenciais ameaçam vir a ser, nesse processo, incrivelmente fracturantes.