A ministra da Saúde diz que “a governação não é autista” — mas eu sou
Se usa a palavra autista na televisão, por favor que seja para informar e criar apoios — que, de momento, são poucos ou inexistentes em algumas comunidades — e não para perpetuar estereótipos que apenas irão prolongar a nossa luta. Convido Marta Temido a conversar comigo ou com qualquer autista que lhe diga o quão bonito e único o nosso cérebro é.
Marta Temido, a nossa ministra da Saúde, acabou de atingir ouro com uma ideia brilhante durante uma conversa com Cristina Ferreira durante o programa Dia de Cristina de 29 de Setembro, na TVI. Deixem-me explicar. “A governação não é autista, a governação às vezes não consegue reflectir inteiramente qual é a vontade das pessoas, mas a governação não é autista”, dizia Marta Temido sobre o facto de o Governo português estar atento à vontade dos portugueses no que diz respeito ao novo coronavírus.
Num país onde nem sequer se fala da quantidade de autistas por diagnosticar, a nossa ministra, com uma mestria incrível, acabou por diagnosticar — ou não — o autismo ao Governo de Portugal em dez segundos, num programa da tarde.
Talvez seja esta a resposta: dar diagnóstico, terapia e apoio aos autistas nos programas da tarde, já que recebê-los através do sistema de saúde é uma luta de anos. Aí está uma ideia brilhante, que fica para a Cristina Ferreira.
Agora a sério: o autismo não é uma desconexão com o mundo, mas antes uma hiperconexão. Como autista, eu estou bem mais conectada com tudo à minha volta, visto que o meu cérebro não consegue desligar sons de fundo, pelo que o meu maior problema é, de facto, não conseguir desconectar.
Sou autista de 30 anos, com sucesso na minha carreira devido, precisamente, às capacidades que o autismo me deu. Nós temos todo o potencial para sermos membros produtivos da sociedade, mas precisamos de alguma ajuda. Poderão ser diversos tipos de terapia, visto que ninguém com autismo é igual, como terapia da fala ou ocupacional.
Para muitos, o novo coronavírus estragou diversos planos de férias, viagens, concertos e outras actividades, mas para uma pequena comunidade, a dos autistas e das suas famílias, veio adiar ou retirar as poucas terapias às quais têm acesso. Muitas das terapias da fala e ocupacionais foram canceladas devido à pandemia de covid-19, com impactos impensáveis nas crianças que necessitam delas para melhorar os seus prognósticos de fala, de socialização e, de um dia, poderem integrar-se totalmente numa sociedade que claramente não se adapta a elas, mas também não os ajuda a adaptarem-se.
Muitos pais falaram comigo sobre os anos que esperaram para as terapias serem aprovadas no nosso Sistema Nacional de Saúde, até que tiveram que decidir se iriam pagar seu próprio bolso, com um golpe financeiro enorme para a família, ou esperar e colocar em causa o progresso dos seus filhos. Sim, porque as terapias da fala devem ser começadas o mais cedo possível nas crianças autistas não verbais para um melhor prognóstico.
Esta falta de apoio é crónica e indica alguma falta de esperança que o nosso Governo tem na capacidade e potencial dos autistas. Eu, que tenho uma licenciatura, um mestrado e trabalho na área de investigação, posso garantir que esse investimento vai ser retribuído em dobro.
Não é a primeira vez que vemos pessoas a utilizar “autista” para dizer que não comunica, que não fala, uma pessoa não existente ou não presente. Isto é mentira e perpetua uma ideia totalmente errada do que é o autismo, dificultando ainda mais a nossa luta para desmistificar esta condição. O que, confesso, não esperava era ter a entidade mais alta do Ministério de Saúde a fazê-lo também. Algumas pessoas podem dizer que é só uma expressão, mas não: ser autista não é uma expressão, ser autista é ser-se humano. Não deveriam utilizar as nossas dificuldades para insinuar que não são como nós, que são melhores.
Por fim, uma palavra à nossa ministra da Saúde, Marta Temido. Se usa a palavra autista na televisão, por favor que seja para informar e criar apoios — que, de momento, são poucos ou inexistentes em algumas comunidades — e não para perpetuar estereótipos que apenas irão prolongar a nossa luta. Convido-a a conversar comigo ou com qualquer autista que lhe diga o quão bonito e único o nosso cérebro é.
Estarei sempre disponível para diálogo com qualquer entidade governamental que tenha a vontade de apoiar e melhorar as condições dos autistas em Portugal, mesmo com a nossa ministra da Saúde. Estarei de braços abertos para dialogar.