Na Baixa de Lisboa há Terroir: um balcão de cozinha criativa com janela para o vinho
Pequenos pratos descontraídos, harmonizações com vinho, um espaço para a descoberta. O restaurante Terroir já nasceu adaptado à pandemia: na Baixa, abre-se uma simpática janela e um mapa para quem optar pela versão piquenique.
Quem entrar na casa-de-banho do Terroir, o novo restaurante que abriu na Rua dos Fanqueiros, em plena Baixa lisboeta, e vir uns bichinhos, de um tamanho considerável, a subir por uma parede, não tem que se assustar. Não se trata de uma praga – ou melhor, foi uma praga, sim, mas nunca atacou restaurantes. O bichinho da filoxera, que destruiu as vinhas por toda a Europa e outras zonas do mundo nos finais do século XIX, tem aqui uma discreta homenagem.
Criados pela artista Daniela Rodrigues, os “bichos” escapam-se da casa-de-banho e revelam-se nas várias fases da sua evolução num caminho até ao lavatório, situado numa zona exterior, recordando-nos uma história antiga, que podia ter sido o fim da produção de vinho na Europa e em Portugal. Felizmente não foi, e graças a isso hoje Portugal é um país de vinho – e o Terroir quer ser uma montra do que de mais interessante existe nesse campo.
Erik Ibrahim, que é, juntamente com a mulher, Inês Santos, proprietário deste novo espaço – ao qual gostam de chamar “atelier gastronómico” – explica que o que se pretende com o Terroir é precisamente cruzar os universos do vinho e da comida. Não é por acaso que o balcão, em mármore, tem a forma de meia garrafa. A carta de vinhos inclui cerca de trinta referências, criteriosamente escolhidas pelo sommelier Rudolfo Tristão, que foi professor de Erik e Inês quando estes passaram pela Escola de Hotelaria e deixou-lhes este outro “bichinho”: o fascínio pelo vinho.
Inicialmente, a ideia era ter umas “tapas criativas”, diz Erik, mas o encontro com o chef Miguel Vaz (que passou por cozinhas como as do 100 Maneiras, Fortaleza do Guincho, Herdade do Esporão, e foi chef executivo no Bairro do Avillez) veio dar nova ambição e o que o Terroir propõe hoje é uma cozinha descontraída, mas “com um toque de autor”, para comer de preferência ao balcão, o lugar ideal para ver Miguel finalizar os pratos, que vão desfilando à nossa frente, harmonizados com diferentes vinhos.
Há, para já, dois menus de degustação, um com “nove momentos” e mais “influências do mundo”, outro um pouco mais curto, com seis momentos. E, para marcar o estilo, começamos com um guacamole servido gelado (e num pau de gelado) com corn-flakes picantes. Percebemos, com esta brincadeira, que estamos aqui para uma refeição que se pretende divertida e surpreendente sem se impor demasiado – um pouco como “uma barra espanhola, descontraída sem ser relaxada”, resume o chef.
Miguel Vaz foi desenvolvendo algumas ideias e, em certos casos, confessa-se até admirado pelo sucesso que alguns pratos tiveram. É o caso do de batata-doce roxa com leguminosas cozidas a baixa temperatura, avelãs e azeite de trufas. O efeito visual é muito bem conseguido, pela cor da batata, mas é o sabor que nos deixa rendidos, com os contrastes a dar um equilíbrio que torna este prato de aconchego o mais inesquecível da refeição.
A bola-de-berlim com recheio de bacalhau e chouriço de porco preto assado tornou-se já um dos mais emblemáticos da ainda curta vida do restaurante (não valia a pena concorrer com a memória que as pessoas têm dos pastéis de bacalhau, por isso é outra coisa, explica Miguel, um fã confesso de bolas-de-berlim); as ostras com dashi e coco são óptimas e cumprem a função refrescante que se espera delas; os fígados de galinha com aipo de coentrada, caramelizados, são muito bons, constituindo um desafio pela sua intensidade, que o aipo ajuda a cortar (é servido com um vinho de Carcavelos, Villa Oeiras, sete anos); a barriga de porco com figos secos cozidos em calda de chá fumado é também muito saborosa no seu jogo entre o doce e o salgado (acompanhada pelo Laranja Mecânica, um vinho de curtimenta de António Maçanita); e, nos doces, os frutos vermelhos, lima e manjericão vêm mais uma vez dar leveza e frescura antes da intensidade da segunda sobremesa, de chocolate, miso, funcho e menta (isto para quem optar por comer o menu, claro, dado que a opção à carta também existe).
Não foi fácil encontrar um espaço na Baixa – estávamos ainda no período pré-pandemia e as ruas da Lisboa histórica tinham mais estrangeiros do que os que parecia possível gerir. Mas, depois de uma experiência de hotelaria na China e de vários anos afastados deste universo, Inês e Erik sabiam bem o que procuravam.
Quando encontraram este espaço na Rua dos Fanqueiros – o projecto arquitectónico é da Involve, executado pelo DarkStudio –, planearam-no muito em função da experiência ao balcão, sobre o qual paira um candeeiro-nuvem desenhado por Miguel Arruda, fizeram uma parede de espelho para lhe dar profundidade e convidaram o artista plástico Martinho Pita a criar uma peça que, à semelhança do bichinho da filoxera, também remete para a vinha, com ramos de videira a sair do espelho como se este fosse água.
“Já nascemos com a pandemia. Não tivemos que nos reinventar”, diz Erik, sorrindo. A operação foi pensada já tendo em conta as necessidades do distanciamento social – e a generosa janela é parte importante disso. Ao final da tarde há um período em que todo o serviço é feito apenas à janela. É possível, aí, pedir alguns dos pequenos pratos e acompanhá-los com um cocktail (a maior parte são vínicos) ou com um copo de vinho.
Ou ainda optar por uma ideia original: encomendarmos o que se quisermos, e levar um cesto de piquenique para comer onde nos apetecer. Se formos estrangeiros ou simplesmente conhecermos mal Lisboa, o Terroir oferece um bonito mapa (com ilustração de Ana Gil) para nos orientarmos e podermos encontrar um espaço verde ou um banco confortável para ficarmos a comer – ao ar livre e com distanciamento social.