A empatia que nos faz falta

Porque é que não denunciámos aquele professor que nos pôs a mão no joelho abusivamente? Porque é que não demos um tabefe no pervertido que se encostou no autocarro?

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Brooke Lark/Unsplash

A Boa Feminista admira profundamente a coragem inabalável com que muitas mulheres levantam a voz para dizer exactamente o que lhes vai na cabeça e o que lhes foi marcado no corpo. Enfim, admira a coragem alheia (talvez porque seja o atributo que mais lhe falta e que mais gostaria de ter, mas enfim, não se pode ter tudo). Em tempos de #MeToo e de encómios intermináveis a tantas mulheres corajosas, muitas encolhem-se envergonhadas porque não foram, ou não são, capazes de levantar o estandarte, de pôr as botas de combate e marchar na linha da frente, bem de frente e na cara do rol de agressores.

Desde sufragistas como Pankhurst ou Carolina Beatriz Ângelo, a uma “Atena Nua”, mulher sem nome e sem rosto, despida e vulnerável perante um cerco violento e policial, não há como corar um bocadinho perante a (in)consequência da nossa inacção. Porque é que não denunciámos aquele professor que nos pôs a mão no joelho abusivamente? Porque é que não demos um tabefe no pervertido que se encostou no autocarro? Porque é que deixámos de responder furiosamente e de provocar um pequeno tumulto no jantar de Natal perante os comentários misóginos do tio/pai/irmão/avô/penetra (escolher opção mais indicada…)?

De certeza que há por aí muitos homens cheios de vontade de dar todas as explicações que nós, mulheres, a partir da nossa rica experiência neste campo, ainda não alcançámos ou não percebemos (mansplaning, anyone?). Mas o facto é que, do lado oposto da mancha da vergonha, está a marca do ressentimento. De geração em geração, a falta de empatia e de generosidade de mulher para mulher, de mãe para filha, de avó para neta, de colega para colega, de amiga para amiga, representa um grande entrave a esta luta inglória contra o sexismo, o machismo e a misoginia que são, ainda, o pão nosso de cada dia. Quantas vezes não ouvimos histórias acerca do passado não-tão-bem-comportado-assim da matriarca intransigente que fez a vida negra à filha e moralizou as escolhas de vida da neta ao ponto do total desprezo?

Quantas vezes não soubemos das mulheres em cargos de chefia que prejudicaram funcionários porque se atreveram a ter filhos/amamentar/sair mais cedo para ir buscar a cria doente (escolher opção mais indicada…)? Quantas vezes aquela senhora no autocarro não se sentiu à vontade para criticar a indumentária alheia? E quantas vezes não são as nossas mães a dizer-nos tudo aquilo que uma menina não deve fazer? Não, nada disto é apenas uma questão de poder e de competição, mas sim algo do género “Se eu aguentei e calei e estou aqui, também podes, e deves, aguentar e calar, porque é assim que tem de ser”! Ou porque outra razão há ainda tantas mulheres por aí que acham que nunca sofreram qualquer tipo ou forma de discriminação, de assédio e de violência apesar dos constantes avanços da vasta trupe de machos lusitanos que pululam pelas esquinas?

Mas enfim, alegremo-nos, em vez de nos zangarmos: uma boa feminista não é só aquela que põe a boca no trombone e denuncia com ferocidade os abusos a que foi sujeita enquanto mulher. Uma boa feminista também é aquela que, não conseguindo ultrapassar o trauma e vivendo silenciosamente com essa indesejada companhia, para sempre gravada no corpo e na memória, resiste a passar para o lado do ressentimento que tolhe as relações entre mulheres. E assim transforma toda essa vasta experiência na tal empatia que tanta falta nos faz.

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