Uma imagem da Pietà que vale uma polémica
A Pontifícia Academia para a Vida publicou no Twitter uma fotomontagem da escultura de Miguel Ângelo numa mensagem declarada contra o racismo. Uns aplaudiram, outros não.
Uma imagem vale mais do que mil palavras — a expressão é conhecida, e usada em múltiplas situações. A mais recente partiu do Vaticano, com a Pontifícia Academia para a Vida a publicar no Twitter, no último fim-de-semana, uma inesperada montagem da famosa Pietà, de Miguel Ângelo (1475-1564), segurando no colo o corpo morto de um Cristo negro. A montagem é acompanhada com a legenda “Uma imagem que vale um discurso”. A verdade é que valeu vários discursos, e em registo de polémica, como seria de esperar.
A Pietà (Piedade, em português) é uma das mais celebradas esculturas do Renascimento. Terminada por Miguel Ângelo em 1499, quando o artista não tinha ainda 25 anos, representa a Virgem a segurar o cadáver de Jesus, depois de descido da cruz e antes de ser sepultado. Instalada na Basílica de São Pedro, em Roma, tornou-se um dos ícones do Cristianismo.
O tweet, que aquele órgão do Vaticano publicou a pretexto da inauguração, em Milão, da uma nova galeria de arte, segundo refere o diário espanhol ABC, motivou reacções diversas, mas muito polarizadas entre o elogio do gesto a chamar a atenção para a luta contra o racismo e a acusação de “blasfémia”. “O que querem com isto? Onde está o nosso Jesus?”, perguntou um utilizador do Twitter. “Vade retro”; “Não tocar em Miguel Ângelo”, disseram outros, reclamando que “não existe um ‘Jesus negro’ ou um ‘Jesus branco’; existe apenas um Cristo”.
Os protestos mais activos partiram de sites de organizações conservadoras norte-americanas, como — refere a agência Ansa — o Novus Ordo Watch e o Church Militant. Este comparou mesmo a iniciativa da Pontifícia Academia com o acto de vandalismo perpetrado, em 1972, por um geólogo húngaro que danificou a escultura de Miguel Ângelo, fazendo com que ela passasse depois a ser resguardada por um vidro à prova de bala.
A agência noticiosa católica Novenanews associou o post da Academia fundada pelo Papa João Paulo II em 1994 ao movimento Black Lives Matter, que se tornou especialmente activo nos Estados Unidos após as recentes mortes de cidadãos negros às mãos da polícia. Nos meios mais conservadores da Igreja americana, essa associação foi interpretada como uma apologia deste movimento anti-racista, e deu origem a críticas directas ao responsável pela Academia, monsenhor Vincenzo Paglia. Numa declaração também citada pelo ABC, o porta-voz do órgão do Vaticano, Fabrizio Mastrofini, negou qualquer ligação com o Black Lives Matter. “Isso é uma manipulação politizada. Esta imagem quer ser uma mensagem de 360 graus contra o racismo”, esclareceu Mastrofini.
Visibilidade e representatividade
Este gesto anti-racista é visto como “bastante importante” pela activista e professora Beatriz Gomes Dias. “Ao colocar, numa peça icónica como a Pietà, um homem negro, que pertence a grupos historicamente oprimidos e que não aparecem nas representações da Igreja Católica — ou, quando aparecem, são-no sempre numa posição subalterna —, o Vaticano contribui para a visibilidade das pessoas negras e a sua representatividade no seio da Igreja”, diz ao PÚBLICO a também deputada do Bloco de Esquerda.
A activista vê ainda nesta mensagem da Pontifícia Academia o sinal de que a instituição, ao mais alto nível, “está a acompanhar os debates contemporâneos sobre a representatividade, sobre os processos de exclusão, sobre a opressão que historicamente tem atingido determinados grupos”, e, ao inscrever-se neste debate, “o Vaticano está a alargar o campo de análise e de discussão, e também a contrariar a narrativa supremacista que coloca as pessoas brancas no topo da hierarquia social e humana”.
Ouvido também pelo PÚBLICO, o padre Anselmo Borges vê como “muito interessante” a iniciativa da Academia. “Nós não temos nenhuma fotografia do Cristo real. Por isso, há muitas possibilidades de o imaginar”, diz o professor de Filosofia, interpretando a fotomontagem da Pietà como uma forma de “dizer que Jesus é o salvador universal” e que, como “homem verdadeiramente universal, tem muitos rostos”. “Não sabemos como ele era; por isso, é absolutamente natural que, em África, representem uma Nossa Senhora e um Menino Jesus negros, que na Ásia os representem com rosto asiático… O ser humano é sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura, e é preciso que o Evangelho se insira nas várias culturas”, defende Anselmo Borges.
O padre e professor não vê, de resto, nenhum problema na associação com o movimento Black Lives Matter: “Todas as vidas merecem respeito. Com esta imagem, estamos a dizer que as vidas dos negros são importantes”, nota, lembrando que coube ao Cristianismo chamar a atenção para “os direitos humanos e para a infinita dignidade de todo o ser humano”.
Esta não é a primeira vez que a Pietà é usada como pretexto para acções de luta contra o racismo. Em Janeiro de 2018, o escultor italiano Fabio Viale expôs em Milão uma réplica da escultura de Miguel Ângelo num gesto de homenagem ao jovem negro nigeriano Lucky Ehi, que morreu em sequência da perseguição religiosa que sofreu e que o obrigou a fugir do seu país.