Cientistas portugueses querem “mercado de ecossistemas” em que quem degrada tem de pagar
Miguel Bastos Araújo vai coordenar, em colaboração com quatro outros investigadores, o estudo Biodiversidade 2030: contributos para a abordagem portuguesa para o período pós-metas de Aichi, que pretende dotar os decisores políticos de conhecimento para agir em cinco grandes eixos
Cinco investigadores portugueses vão trabalhar, no próximo ano e meio, num estudo que funcionará como o documento técnico de apoio por excelência à tomada de posição política portuguesa sobre a biodiversidade. A coordenação geral do estudo, concretizado através de um protocolo de cooperação entre o Fundo Ambiental e a Universidade de Évora, assinado esta terça-feira, está a cargo do cientista Miguel Bastos Araújo, que destaca, já, três grandes contributos que deverão sair do trabalho a desenvolver. O “mais fora da caixa”, diz, é o desenvolvimento de uma proposta de um mecanismo de remuneração dos serviços do ecossistemas, à semelhança do que existe no mercado de carbono. O contrato foi assinado no dia em que as Nações Unidas (ONU) revelaram que nenhuma das metas de Aichi, estabelecidas no Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, foi atingida.
As notícias para a biodiversidade têm sido muitas e más. Depois da divulgação do Relatório Planeta Vivo 2020, que dava conta de um declínio de 68% das populações de vertebrados do planeta entre 1970 e 2016, esta terça-feira foi revelado o 5.º Global Biodiversity Outlook, o documento em que a ONU faz a mais recente avaliação do biodiversidade do planeta, e as notícias continuam preocupantes: a declarada “década da biodiversidade” (2011-2020) ficou muito aquém do que seria necessário e nenhuma das 20 metas de Aichi foi atingida na sua plenitude, havendo apenas seis que foram “parcialmente alcançadas”.
É com este cenário que Miguel Bastos Araújo, da Universidade de Évora, e quatro colegas de outras instituições do país, irão trabalhar no estudo Biodiversidade 2030: contributos para a abordagem portuguesa para o período pós-metas de Aichi. Ainda assim, o biogeógrafo não perde o optimismo: “Se sucumbir ao pessimismo, não faço nada, vou para casa, planto uns tomates e baixo os braços. Essa atitude não é positiva. Como Humanidade temos conseguido fazer grandes coisas. Há alguns falhanços e em matérias ambientais temos nota negativa, mas acredito que se nos orientarmos bem, se colocarmos a energia e os recursos onde têm de estar, conseguiremos inverter isso”, diz.
O trabalho que agora começou tem precisamente esse objectivo - dotar o Governo de dados e sugestões para futuras decisões políticas que nos coloquem no caminho certo para estar em linha com a Estratégia da Biodiversidade da União Europeia para 2030 e, em simultâneo, dotar o país de capacidade para contribuir para esse processo - e também para a 15.ª Conferência das Partes (COP) das Nações Unidas para a Convenção sobre a Diversidade Biológica, reagendada para o segundo semestre do próximo ano -, numa altura em que Portugal se prepara para assumir rotativamente a presidência da UE, em Janeiro de 2021.
Aos investigadores, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática pediu que trabalhassem em cinco grandes eixos: Biodiversidade e Alterações Climáticas (coordenado pelo próprio Miguel Araújo), Biodiversidade e Território (coordenado por Maria do Rosário Oliveira, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), Biodiversidade e Águas Interiores e Costeiras (sob a alçada de Isabel Sousa Pinto, da Universidade do Porto), Biodiversidade e Oceanos (coordenado por Emanuel Gonçalves, da Fundação Oceano Azul) e Biodiversidade e Pessoas (a cargo de Cristina Marta-Pedroso, do Instituto Superior Técnico). “Vamos fazer uma mistura de várias coisas. Por um lado, ver o que já está a ser feito e o que pode ser melhorado, em termos de política de conservação. E, depois, mais fora da caixa, iremos propor políticas novas em domínios que de momento não estão a ser abordados pelo Governo”, explica o cientista vencedor do Prémio Pessoa em 2018.
É aqui, nestas ideias “mais fora da caixa”, que Miguel Bastos Araújo situa os três principais contributos que deverão sair do estudo. O primeiro dos quais é “propor um conjunto de medidas que permitam perspectivar uma política de adaptação da biodiversidade às alterações climáticas”, diz. Uma “novidade”, salienta, já que a intersecção entre estas duas componentes ainda está por fazer. “Temos planos de adaptação para as comunidades humanas, mas não para a biodiversidade que, naturalmente, também irá sofrer. Temos de caracterizar a medida desse sofrimento e propor formas de o paliar”, explica.
O segundo grande contributo do grupo será o de fazer uma proposta concreta sobre quais as parcelas do oceano da zona económica exclusiva portuguesa que devem integrar os 30% de área protegida marinha até 2030, conforme pretendido pela UE.
Por fim, a ideia que o investigador considera como “a mais fora da caixa”, está no eixo Biodiversidade e Pessoas e prende-se com o mecanismo de remuneração dos serviços de ecossistemas. A ambição do grupo - mesmo sem os detalhes estarem ainda definidos - é propor um mecanismo em que o processo de decisão sobre aquela remuneração não esteja totalmente dependente do Governo e do Orçamento de Estado. “O que eu gostaria de propor é um mecanismo de mercado um bocadinho análogo ao do mercado de carbono. Há algumas experiências na Austrália, África do Sul e Finlândia, em que quem degrada tem de pagar por isso, para um fundo que é aplicado naqueles que criam serviços de ecossistema. Um agricultor sabe que os produtos como os tomates, o vinho ou a uva são remunerados, mas há outros que pode produzir (deixando, por exemplo, uma parte do terreno para a natureza), que não o são, apesar de serem um bem para a sociedade”, explica.
Miguel Bastos Araújo considera que um mecanismo deste género “bem afinado, estável e que funcione, seria a maneira de se trazer alguns valores intangíveis que os ecossistemas dão para as contas do mercado”. E isso pode fazer toda a diferença.