Os que falam de mais e os que escutam o que não querem
Ficamos ali a ouvir, como se estivéssemos numa cadeirinha de baloiço, oscilando entre o tédio, a vergonha alheia e o adormecimento. Por educação e empatia, tentamos acompanhar a narrativa dramática, situada no ano do campeonato do mundo no México, mas desejamos com muita força que a pessoa não queira estender o divã para o nosso lado.
Alguém que conhecemos mal decide, entre uma garfada de bife à casa e um gole de vinho, desatar o saco das memórias de infância. Assim, do nada, começa a contar todos os seus traumas, com episódios detalhados sobre o pai ausente, a mãe neurótica, um tio bêbado, uma avó maldosa, eu sei lá. A questão é: ninguém lhe perguntou nada. E ninguém lhe perguntou nada desse cariz íntimo, privado, porque, obviamente, tratam-se de perguntas inconvenientes quando mal conhecemos uma pessoa.
Pois é, estamos no segundo jantar, a conversa flui bem sobre cenas da actualidade, estamos interessados em falar com aquela pessoa e, do nada, a mesa do restaurante torna-se um divã no qual a nossa companhia da noite se encontra esparramada a chorar interiormente, relembrando um episódio passado em 1986, fazendo do guardanapo de pano o seu kleenex.
Ficamos ali a ouvir, como se estivéssemos numa cadeirinha de baloiço, oscilando entre o tédio, a vergonha alheia e o adormecimento. Por educação e empatia, tentamos acompanhar a narrativa dramática, situada no ano do campeonato do mundo no México, mas desejamos com muita força que a pessoa não queira estender o divã para o nosso lado. Jamais nos iríamos deitar na mesa do restaurante para falar sobre memórias de infância e, se antes de ter início o primeiro episódio de auto-comiseração, até tínhamos imaginado a mesa do restaurante como possível estrado para nos pormos na horizontal a dois, de repente, a fantasia fica absoluta e irreversivelmente aniquilada: em vez de um adulto à mesa, passámos a ter connosco uma criança de sete anos, cheia de ranho e a fazer queixinhas dos pais.
Esperamos então que a noite termine. Vamos anuindo, ouvindo com a atenção que só nos é possível por ser corroborada por vários enchimentos de copo, e regressamos a casa com a sensação de termos sido devassados pela intimidade alheia, detentores de coisas que só ao próprio ou a alguém muito íntimo (ou a um terapeuta) diriam respeito. E ficamos também ainda mais sós, com um sentido de renovada e apurada vulgaridade sobre nós próprios. Os nossos traumas de infância, as nossas histórias, salvo raras excepções, são bastante vulgares. A passagem pelo globo é ordinária, somos todos ordinários. Os que falam de mais e os que escutam o que não querem.