A importância da confiança
Certamente muitas ideias podem ajudar a fortalecer a nossa confiança. Elas aparecerão sempre que olharmos para este envelope financeiro não como um direito, mas sim como um dever partilhado.
Se pudesse escolher apenas um desígnio nacional para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030, eu escolheria o reforço da nossa confiança.
Pode parecer uma resposta esotérica. Mas não é.
O economista Robert Putnam publicou em 1993 o livro “Making Democracy Work”, onde discute a relação entre a cultura de uma sociedade e o seu desempenho económico. Putnam estuda a diferença de riqueza entre o norte e o sul de Itália. Conclui que ela é em parte explicada no conceito de capital social, que se pode definir como o grau de intensidade da vida em comunidade. Sendo que essa intensidade era superior na Lombardia e bem menor no Mezzogiorno. Este autor encontrou no norte italiano uma maior participação associativa em clubes desportivos, em associações de bairro, em grupos de lazer, culturais ou cívicos. Também verificou, comparando com os seus compatriotas do sul, que os italianos do norte votavam mais nas eleições, recorriam mais a mecanismos de crédito formal e liam mais jornais.
O seu influente trabalho foi desde então aprofundado por outros economistas, que procuraram entender melhor o que influencia o nível de capital social de uma comunidade. Estes têm vindo a concluir que é determinante o grau confiança dos cidadãos uns nos outros, e de todos nas suas instituições. Os ganhos de uma maior confiança são intuitivos. Gera mais trabalho em rede, cooperativo ou associativo. Surgem empresas com maior escala e competitividade. Fazem-se investigações científicas mais transversais. E há um maior escrutínio por todos da atividade pública. A confiança é o cimento de comunidades mais participativas, que por sua vez tendem a eleger políticos com agendas mais inclusivas e menos extrativas.
E em Portugal, como está a nossa confiança e o nosso capital social?
Podíamos estar bem melhor.
Dados da World Values Survey confirmam que os nossos níveis de confiança social são inferiores aos da média dos países mais desenvolvidos (medido diretamente pela reação favorável ou desfavorável à afirmação “podemos confiar na maioria das pessoas”). Também alguns dos indicadores de Robert Putnam sinalizam o mesmo. Temos pouco associativismo comunitário e local - por exemplo na Alemanha é raro o cidadão que não participe em nenhuma associação! As nossas empresas têm uma reduzida dimensão média, porque os nossos empresários preferem o controlo, desconfiando da partilha de recursos e de poder. A nossa menor confiança também se revela na crescente abstenção eleitoral e em níveis atualmente baixos de filiação partidária e sindical. Também o aparecimento de partidos antissistema com ideologias xenófobas e racistas é um sinal perturbador de desconfiança de alguns nas instituições que são de todos.
Existem raízes históricas para a nossa fraca confiança coletiva. Atravessámos séculos de instituições e comunidades verticalizadas e pouco inclusivas. E somos um dos países mais desiguais da OCDE, sendo que economistas como Wilkinson e Picket demonstraram uma correlação entre desigualdade económica e desconfiança social.
Mas nem tudo é mau. Tem havido apesar de tudo uma evolução lenta, gradual e positiva do nosso capital social ao longo das últimas décadas. A nossa sociedade civil é hoje mais educada, exigente e organizada. Existe uma imprensa que é livre e que escrutina. Encontramos algumas indústrias com empresas a organizarem-se em rede na sua internacionalização. Surgiram e multiplicaram-se os orçamentos participativos locais. E também o programa Simplex tem dado um contributo positivo e por vezes negligenciado: em muitos atos administrativos passou a imperar o princípio da confiança nos cidadãos até prova em contrário.
Só que não convém baixar os braços. Devemos procurar reforçar ainda mais o nosso capital social para extrair os frutos pretendidos no nosso bem-estar individual e coletivo. E o Plano de Recuperação Económica de Portugal é uma oportunidade excelente para isso.
Na fase da preparação e apresentação do Plano, devemos assegurar que este seja debatido publicamente em todos os municípios do país, em fóruns públicos e participados. Sendo que este debate aberto e livre das nossas prioridades estratégicas pode dar-se também no ensino secundário e nas universidades.
Podemos atribuir às autarquias uma responsabilidade direta na decisão de uma parte significativa do investimento público previsto, sempre que este for em linha com os desígnios estratégicos adotados. E majorar o financiamento dos investimentos locais sempre que estes forem decididos com participação comunitária.
E porque não eliminamos todas as majorações de financiamento para PMEs e microempresas? Claro que estas empresas deverão continuar a ser financiadas, são críticas para a nossa economia. Mas majorar a pequena dimensão é um absurdo que sinaliza como virtude a ausência de cooperação e de escala empresarial. Pelo contrário, deveríamos majorar os projetos apresentados em parceria por várias empresas. E aplicar exatamente o mesmo princípio para projetos da administração local e de associações não lucrativas (ver o bom exemplo das EEA Grants).
Podemos também criar linhas de financiamento direto à criação ou reforço do associativismo local, à semelhança da Alemanha. Excluindo as entidades nas áreas da Segurança Social e da Saúde, que já são financiadas por outras formas. Pode ser difícil medir o impacto económico do apoio financeiro a clubes de leitura do bairro, grupos de amigos do cão de água algarvio, defensores dos produtos locais ou organizadores de torneios de bridge. Mas é precisamente este associativismo que reforça os laços de confiança comunitários, melhorando a prazo as economias locais. Para além de contribuir para a redução da solidão que aflige demasiados Portugueses.
Finalmente, temos de adotar uma lógica de transparência radical na monitorização da execução do Plano. Criando um portal público, feito para o cidadão comum, com informação completa e atualizada de dados agregados de investimento, e também de cada projeto. O que foi aprovado, como foi aprovado, porque foi aprovado, como está a decorrer a execução e quem são todos os seus beneficiários.
Certamente muitas outras ideias podem ajudar a fortalecer a nossa confiança. Elas aparecerão sempre que olharmos para este envelope financeiro não como um direito, mas sim como um dever partilhado. Se tal acontecer, em 2030 vamos certamente viver num país mais coeso e maduro. Sendo que já em 2020 estaremos a ser mais responsáveis pelo nosso futuro.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico