Enquanto se pede o boicote de Mulan, na China nem a história convence

O filme gerou uma corrente de críticas devido às ligações à região de Xinjiang, onde as associações de direitos humanos acusam o Governo chinês de ter construído campos de concentração para minorias étnicas.

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A produção do filme terá custado mais de 168 milhões de euros Reuters/CARLOS GARCIA RAWLINS

O filme que foi alvo de tentativas de boicote no Ocidente também não agradou na China. As razões não são as mesmas, mas o remake de Mulan da Disney não consegue livrar-se da controvérsia.

Transformar o filme de animação de 1998 num novo sucesso com actores reais foi uma das grandes apostas da Disney para este ano e terá custado à gigante norte-americana mais de 200 milhões de dólares (mais de 168 milhões de euros). O objectivo seria lançar um blockbuster que ecoasse culturalmente com quem fosse ao cinema na China, o segundo maior mercado mundial no que respeita a afluência de espectadores. Na maior parte dos restantes mercados, o filme realizado por Niki Caro está disponível apenas para visualização através da plataforma de streaming da Disney. O argumento gira à volta de Mulan, a jovem que se disfarça de guerreiro para salvar o pai.

“Se Mulan não funcionar na China, temos um problema”, dizia no ano passado Alan F. Horn, co-chairman da Walt Disney Studios à publicação da especialidade Hollywood Reporter. No fim-de-semana passado estreou-se nas salas de cinema chinesas, mas só conseguiu arrecadar 23,2 milhões de dólares (cerca de 19,6 milhões de euros) nas bilheteiras. Um resultado que terá ficado aquém das expectativas dos produtores, que viram Tenet, o novo filme de Christopher Nolan que teve a sua estreia na semana anterior, a somar mais 5,6 milhões de euros do que Mulan, um filme dedicado especificamente a agradar ao público chinês.

“É uma estreia desapontante”, diz Jeff Bock, analista na Exhibitor Relations, à Reuters. “A Disney fez este filme a pensar nas audiências chinesas e viu-o cair por terra”, remata. O problema, para quem viu o filme já no cinema, reside na adaptação da história. “O filme é um desperdício do nome inocente da Mulan. É de quebrar o coração”, referiu Qiu Tian ao New York Times, depois de ter visto o filme numa sala chinesa. “O realizador percebeu completamente mal o papel da Mulan, e, de forma casmurra, tentou transformar a personagem numa extremista feminina e heróica”, continuou.

No Douban, uma plataforma chinesa de análises e críticas de cinema, um utilizador, segundo a revista da especialidade Variety, refere: “Os americanos convidaram todos os actores chineses famosos de que se lembraram, e todos os elementos chineses que conseguiram encontrar para criar este desastre”. Há também a opinião de que “está cheio de estereótipos sobre a cultura tradicional chinesa”. As críticas ganham impacto quando o estúdio terá contratado uma equipa de consultores e historiadores do país. Foi, inclusive, cortada uma cena que envolve um beijo de Mulan.

Críticas vêm de trás

Mas as críticas ao filme começaram muito antes da sua chegada às salas, e levaram até o Governo chinês a tentar barrar notícias sobre o lançamento do filme junto de alguns órgãos de comunicação social, avançou a Reuters. A controvérsia dividia-se em duas partes. Já no ano passado, Liu Yifei, a actriz chinesa que interpreta o papel principal, foi alvo de críticas quando manifestou nas redes sociais o seu apoio à polícia de Hong Kong enquanto decorriam e se multiplicavam os protestos antigovernamentais. Foi uma das razões que levaram Joshua Wong, uma das principais figuras do movimento pró-democracia de Hong Kong, a declarar o seu apoio ao movimento #BoycottMulan e #BanMulan. Contudo, não foi a única razão.

A maioria das críticas chegou do Ocidente, quando o filme foi lançado na plataforma de streaming e se tornou perceptível que uma parte tinha sido filmada em Xinjiang, região do Noroeste da China que tem sido alvo de fortes críticas de líderes internacionais e de associações de direitos humanos devido aos campos de doutrinação e à violação dos direitos dos uigures. Nos créditos finais, a Disney “agradece especialmente” a oito entidades governamentais em Xinjiang, o que levou a acusações de que a Disney estaria a ser complacente com a actuação do Governo chinês sobre aquela minoria. Em causa estão acções como as descritas nos documentos a que o New York Times teve acesso, com planos de Pequim para levar a cabo uma repressão “sem misericórdia” da minoria muçulmana, alegando a necessidade de combater o terrorismo islâmico. Vários activistas uigures no exílio afirmam que os seus familiares foram detidos na China apenas por usarem barba comprida ou véu islâmico. 

Outra investigação, de um consórcio internacional de jornalistas, publicada em Novembro de 2019, revelou o dia-a-dia dos uigures nos centros de detenção de Xinjiang, classificando-os como “o maior encarceramento maciço de uma minoria étnico-religiosa desde a II Guerra Mundial”. A China, no entanto, garante que estes centros são escolas para ajudarem os uigures a encontrarem emprego, aprenderem mandarim e afastarem-se do jihadismo.

Texto com rectificação às 11h12

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