Obrigada, Portugal
Este ano, como tantos outros portugueses, troquei o passaporte pelas portagens nacionais e, um mês depois, posso seguramente dizer: obrigada, Portugal.
Espreito o conta-quilómetros do carro e vejo um número bem composto: quase 4000 quilómetros percorridos. Não faço das estradas a minha profissão, nem fui e voltei de Bruxelas. Na verdade, não saí deste pequeno rectângulo a que chamo casa.
Este ano, como tantos outros portugueses, troquei o passaporte pelas portagens nacionais e, um mês depois, posso seguramente dizer: obrigada, Portugal.
A história deste Verão começou pela zona ribatejana, onde recuei até ao século XII para (re)ver o Convento de Cristo, monumento que é hoje Património Mundial. Nele percorri séculos, entre o detalhe minucioso das janelas manuelinas e jardins simétricos. Neste espaço, história e arte coabitam.
Após um arranque histórico-cultural, desço a cerca de 100 metros subterrâneos para conhecer uma das sete maravilhas naturais de Portugal: as Grutas de Mira de Aire, que, com uma extensão (conhecida) de 11 quilómetros, são as maiores do país. O que começou com uma descoberta ocasional de alguns habitantes da vila, que lá foram parar em busca de água, tornou-se desde então (1947) num autêntico quadro geométrico de estalactites, que impressionam pela sua magnitude. Descobri que estas crescem um centímetro apenas a cada século.
Sigo para a Serra da Lousã, onde o verde toma conta da topografia da região. As curvas e contracurvas de grande parte destas estradas dão luta aos estômagos mais sensíveis (não me livro desta!), mas a envolvência é a larga recompensa. E se de verde já tem a serra em abundância, não se fica por aqui. As já conhecidas Aldeias de Xisto são prova de que o passado e o presente podem viver numa simbiose temporal. Pequenos aglomerados de casas em rocha cristalina compõem as várias aldeias – algumas mais genuínas, outras já mais sustentadas no turismo. De qualquer forma, é a partir daqui que, nesta viagem, as solas dos meus ténis trocam o ginásio pela natureza – seja ela em modo de terra batida, floresta, estrada ou escadas: caminhadas inter-aldeias, mergulhos na Cascata do Candal, enterrada no “piso -1” da floresta, um passeio de caiaque pelo Rio Zêzere (que fez frente à serra de tanto verde que espelhava) e ainda uma última prova: parece que a serra não está só para ser vista, mas também para desafiar, desta feita com uma descida em rappel de 35 metros, que deram lugar à descoberta de pequenas lagoas e riachos, saltos crescentes das rochas e cascatas espalhadas ao longo do percurso.
Foi altura de continuar a subir, agora com paragem em Arouca para percorrer os famosos Passadiços de Paiva, que contam já com uma panóplia de prémios. São cerca de nove quilómetros para um lado e os mesmos para voltar (embora não seja obrigatório fazer o regresso a pé), sempre com uma paisagem vizinha imponente: o rio Paiva e o vale que o envolve. Este rio foi, em tempos não muito distantes, o rio menos poluído da Europa. Já não o é. Embora quase sempre a direito, existe uma escadaria valente numa das extremidades, o que num dia em que as temperaturas acusavam alerta de incêndio ainda foi um teste à capacidade respiratória. O dia finda e confirmo: a água, tal como a marcha, têm a capacidade de apaziguar pensamentos.
A paisagem muda outra vez. Por terras vitivinícolas, o Douro não é nesta viagem uma descoberta, pois daqui tenho uma costela. É antes uma corroboração de que as vinhas que nos envolvem elevam o nosso país a riqueza geográfica e a qualidade vinhateira. Que assim sempre perdure, e que com copo de vinho se continue a brindar a vontade de viver.
Verão que se preze exige ainda, assim, o sabor a salgado e grãos de areia espalhados pela casa. Com esta certeza em mente, passo pelo Oeste, onde as características nuvens matinais e de final de dia não tiram valor à serenidade do lugar Areia Branca.
Mas quero mais, porque de mergulhos nunca se tem quanto baste. Rumo a Sul e a paisagem de praia comprida e em linha recta dá lugar às praias rochosas da zona algarvia. A geografia altera-se, mas os mergulhos estão lá sempre. Agora com mais luta, pois o mar por aqui gosta de nos recordar quem está ao leme. É também aqui que recupero uma memória de infância, a da bola-de-berlim (sem creme!), que em tempos tantos lanches me consumiu nos intervalos dos mergulhos (claro!), jogos de cartas e até de futebol.
É tempo de rumar novamente a Norte. Sim, é verdade que a rota não está optimizada, mas a leveza das férias traz leveza de espírito e, com isso, os momentos de sobe-e-desce não são mais do que oportunidades para conversar, dormitar, divagar.
Os próximos dias continuam a ser de natureza, agora pelo Gerês. As solas dos ténis tinham conseguido algum descanso enquanto as dos chinelos tomaram conta nos dias de praia. Mas estava na hora de voltarem a palmilhar terreno. Daqui levo mais uma mão cheia de mergulhos, trocando o salgado pelo doce e com mais alguma pele de galinha do que a Sul. Mas também levo um passeio pela aldeia de Pitões das Júnias, composta por casas de pedra com telhados da cor do Sol quando este se põe. Aqui há quem entre e saia, mas há também quem ainda cá fique: cerca de 80 habitantes, explica-nos a senhora, dona de um pequeno negócio de bens locais, como compotas caseiras. Todos os serviços ficam longe desta aldeia e a emigração deixou para trás uma população mais envelhecida. De regresso ao carro, na passagem final pelas estreitas ruas de pedra, desejo boa tarde a uma outra senhora sentada à porta de casa, de rugas vincadas, trajes pretos, bengala na mão. Quantos não deverá ela ver partir ao final de um dia de passeio? Muitos, certamente, pelo menos nesta época veranil.
Nesta serra de borboletas e de grilos, percorro mais trilhos, fotografo pontes medievais, assusto-me brevemente com o carro praticamente atolado num caminho poeirento.
Mas há um trilho que supera expectativas: são oito quilómetros que se iniciam na aldeia de Sistelo, com uma paisagem que vai alternando, permitindo que o tempo prolongado a ganhar altitude não enfureça os gémeos e entusiasme antes o olhar. Com um início ao estilo sintrense, mais húmido e sombrio, o caminho dá lugar a socalcos a céu aberto, que por sua vez dão lugar a uma floresta de longos pinheiros, onde a luz da tarde perde expressão e o silêncio é o som mais ouvido. O dia termina, para mim, que tanto andei, e para o rebanho de ovelhas que se passeia pelas ruas da aldeia com quem lhes comanda o caminho para casa.
Está na hora de começar a descer, novamente. E, simbolicamente, termino onde Portugal ganhou identidade há centenas de anos: na cidade de Guimarães.
Termino como comecei — mergulhada em História que tantas estórias nos contam em riqueza e património.